Em 2011, Carlos Rodrigues Brandão me enviou originais de um novo livro. Pediu-me que opinasse sobre o conteúdo e indicasse editoras. É um texto autobiográfico, ainda inédito. Selecionei alguns textos para que todos tenham ideia de quão digno, profundo e competente foi este querido amigo e parceiro em muitas trincheiras, da pastoral à educação popular.
Frei Betto
Nós e eles, ou: eles em nós
Em Os deuses do povo – um estudo sobre a religião popular e outros sobre sistemas de crenças, ritos e festas da experiência do catolicismo de camponeses e de negros. (…) Meus sujeitos de pesquisa e meus interlocutores eram cristãos católicos, como eu – ora com mais certezas, ora com maiores dúvidas – julgava também ser. Tanto assim que muitas vezes oramos juntos em seus rituais, e não foram poucas as vezes em que, diante de todos, deixei de lado meus aparatos de pesquisa e, reverente, tomei as fitas pendentes de um altar rústico, beijei-as e as passei sobre a cabeça.
Fui certa feita “festeiro de Santos Reis” em São Luís do Paraitinga e talvez de uma forma próxima a vários de vocês, e um tanto mais distante de outros companheiros de ciências sociais, eu me sentia e identificava como alguém que pesquisa algo de um sistema de fé, crença, culto e rito; de uma religião, enfim, que desde a minha infância era também “a minha” e, em cujas verdades essenciais, eu também acreditava. Diante de um rústico altar de santos eu não me ajoelhava como um ator que representa “ser como eles”.
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Em Goiás e, depois, Minas Gerais e São Paulo, varei longas horas de noites entre dezembro e janeiro caminhando, cantando, orando e comendo entre e com foliões de Santos Reis. Durante dias e semanas andei atrás e, entre ternos de congos e de moçambiques, em festas “de santo de preto”. Documentei e, aí sim, varando noites inteiras em claro, e até dancei danças, funções ou folgas de São Gonçalo. Quase sempre sozinho, como é costume entre antropólogos. Algumas vezes acompanhado de estudantes, em fecundas e breves jornadas de oficinas de pesquisa de campo, a que me habituei desde meus primeiros anos de professor, ainda em Goiás.
Havia apenas algumas diferenças em tudo. Estas duas seriam as mais importantes. Primeira: Creio que eles oravam com maior e mais sincera fé do que eu mesmo, devotando em muitas ocasiões às suas preces, rezas de terço e cantórios de louvor ou de “peditório” um tempo imensamente maior do que o que eu ousaria destinar a tais práticas. Segunda: Durante os quase sempre muito longos momentos de seus rituais devotos, eles apenas “faziam aquilo” a que se dedicavam. Eu partilhava com eles “aquilo”, quando era convidado ou me parecia devido e, ao mesmo tempo, os pesquisava.
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Terminada a festa ou o ritual que por algum tempo nos aproximara, eles deixavam de ser reis e rainhas, nobres de uma corte processional de negros, mestres, contramestres e outros devotos-artistas errantes em nome dos Três Reis do Oriente, ou dançantes em louvor a São Gonçalo, e retornavam à rotina de serem pedreiros, subempregados, biscateiros, garçons, lavradores de arroz e milho, mulheres “donas de casa e mães de família”. E eu, que os deixava e viajava de volta, permanecia sendo o antropólogo que os “pesquisara” e agora deveria escrever sobre eles. Ou seja, traduzir em que acreditavam, o que faziam e criavam diante de mim e dos outros, em uma linguagem que eles não entenderiam se algum dia me lessem.
Mas, a seu modo, eles conheciam outras diferenças. E um dia, do meio de seu terno, ao me ver numa esquina de rua gravando e fotografando, um capitão negro de congos interrompeu o seu canto para me gritar entre sorrisos: “Eh, meu branco! Quem sabe, dança. Quem não sabe, estuda!”
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Depois de haver saído da vida universitária como estudante e, também, da Juventude Universitária Católica e do Movimento de Educação de Base, onde vivi a mais forte e intensa experiência do pertencer a uma pequena e ativa comunidade cristã de fé (o crer pessoal), de crença (o crer comunitariamente com outras pessoas), de vida, destino e militância – algo a que dávamos naqueles anos o nome de “engajamento” – iniciei uma vida dupla que já abria suas duas trilhas para mim ainda nos tempos de estudante. Creio que vários dentre os que agora me escutam, e mais adiante poderão ler o que escrevi, viveram ou vivem ainda algo bastante semelhante.
Ao mesmo tempo, e quase sempre repartindo um mesmo dia, mesma semana, mesmo mês de vida e de trabalho, me tornei professor universitário e permaneci vivendo o que até imagino ser uma dimensão de militância. Assim, desde agosto de 1967 vivo o ser um professor e um antropólogo, desde cedo bastante motivado pelo mundo rural e pelos cenários e espaços rurais daquilo a que dei e damos nomes como: culturas camponesas, culturas populares, culturas rústicas e, de maneira especial em meu caso, as tradições populares de negros, mestiços e brancos católicos, residentes em áreas rurais ou em cidades agrárias de pequeno porte.
As mesmas culturas a que demos durante os anos sessenta e seguintes nomes mais políticos, como: culturas dominadas, culturas oprimidas, culturas do povo e assim por diante. Tempos em que, com frequência, Cultura Popular costumava ser escrita com maiúsculas e deu origem aos movimentos de cultura popular de que participei através do Movimento de Educação de Base.
Nascido em Copacabana e, depois, morador da Gávea, dois bairros de classe média de uma grande cidade, nunca me interessei por temas ligados à antropologia urbana, e mesmo o limite de minhas pesquisas sobre a religião foram em cidades interioranas de porte médio ou pequeno, como Itapira, São Luiz do Paraitinga, Goiás (cidade de), Pirenópolis, Mossâmedes e outras.
Em outra direção, durante todo o período dos governos militares, dei continuidade a uma “vida militante” junto a “movimentos sociais de Igreja” e experiências de luta e resistência, que as Comunidades Eclesiais de Base e na Diocese de Goiás costumávamos chamar de Igreja do Evangelho. Boa parte de toda a minha participação de então foi através do Centro Ecumênico de Documentação de Base, da Diocese de Goiás e, em menor escala, de outras, como a de São Félix do Araguaia.
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Nos anos oitenta participei de um longo trabalho de pesquisas sobre o catolicismo no Brasil de então. Foi uma iniciativa do Instituto de Estudos da Religião, do qual fiz também parte por muitos anos, e foi coordenada por Pierre Sanchis. De maneira quase simbólica, mais do que acadêmica, para um dos volumes escrevi um estudo sobre “eles”, os outros: A partilha do tempo. Um momento de antropologia do campesinato realizado junto a pessoas e famílias de uma comunidade encravada na Serra do Mar, entre Taubaté, no Vale do Paraíba, e Ubatuba, no Litoral Norte de São Paulo, chamada Catuçaba, pertencente ao município de São Luís do Paraitinga. Um dos últimos redutos brasileiros onde todos os anos, com solene pompa e alegre festa, comemora-se, nas ruas e dentro da igreja, a Festa do Divino Espírito Santo.
Para outro volume escrevi um estudo sobre “nós”, os cristãos situados, frente aos camponeses de Catuçaba, do outro lado das culturas: a profana e a religiosa. Uma incômoda e persistente clivagem visível e vivida, que desde pelo menos os anos heroicos da década de sessenta nos acostumamos a chamar de “cultura erudita” (a nossa, ou a dos que pesquisam e escrevem… mas não sabem dançar) versus a “cultura popular” (a deles, ou a dos que são pesquisados, descritos e escritos… mas sabem dançar).
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O que vivemos e somos agora? O quê? Quem? Nós, que trilhamos o ser-cristão-católico entre a Ação Católica e os Movimentos de Cultura Popular entre o final dos anos 1950 e os anos 1960. Aqueles que depois viveram intensamente, como tantas e tantos de nós, as vocações renovadoras conciliares e pós-conciliares, que na esteira de nossas próprias ousadias anteriores nos abriram difíceis portas e nos apontaram não menos desafiadores horizontes que desaguavam na Teologia da Libertação, nas Comunidades Eclesiais de Base, nas “Igrejas do Evangelho”. Nós, que nos abrimos – em tempos de novos fundamentalismos e, em direção oposta, tempos de uma mercantilização desenfreada do sagrado – a redescobertas que nos obrigam a despojamentos antes impensáveis de nós-mesmos. Que nos desafiam agora a saltos em direção a alianças e comunhões com “outros”, cada vez mais diversos e mais aproximados de nós justamente por causa de suas diferenças culturais e religiosas.
Lembro-me dos tímidos primeiros passos de nossa vocação ecumênico-cristã dos tempos de surgimento em minha vida do Centro Ecumênico de Documentação e Informação e do Instituto de Estudos da Religião. Lembro-me da abertura deste primeiro passo de acolhida do diferente e dos saltos seguintes a que ele nos obrigou. Lembro-me do que aprendi com pessoas do Conselho Missionário Indigenista e da Teologia da Inculturação.
Em meio a católicos e a outros cristãos empenhados em dedicar suas vidas à conversão de “pagãos” negros do candomblé ou indígenas da Amazônia, eis-nos diante de missionários católicos que se negavam a qualquer ação conversionista e me ensinavam, como ouvi de um deles, que: “a minha missão como missionário inculturado é fazer tudo o que puder para que os índios com quem trabalho creiam e vivam a sua própria fé indígena tradicional em toda a sua plenitude. Porque o ser-cristão neles não é o converter-se ao meu cristianismo, mas o viver a sua própria ancestral experiência religiosa e espiritual de seus deuses”.
E alguns passos e saltos maiores foram e seguem sendo dados ainda. Recordo o Mosteiro da Anunciação do Senhor, também na Cidade de Goiás. Nas cerimônias rituais de cada manhã, celebrávamos um dia “em comunhão com os nossos irmãos budistas”; outro com os muçulmanos, outro com os praticantes dos cultos religiosos de tradição afro-americana. E nos considerávamos – a menos que eu mesmo esteja colocando sobre este “nós” o que eram as palavras de meu próprio desejo – “cristãos de tradição católica”. Homens e mulheres praticantes e participantes de uma entre tantas vocações de fé e de prática pessoal e solidária da religião e da vida espiritual, todas elas tradições tão “verdadeiras” e santificadoras quanto a nossa, a “católica”, uma entre tantas outras tradições históricas e culturais de uma mesma religião: o cristianismo. Uma religião entre as muitas moradas de fé em que um mesmo Deus de múltiplos rostos se dá a ver é pronunciado e acolhido pelos humanos.
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O que somos, agora?
Lembro que este “nós” a que tenho me referido deve ser entendido em uma dimensão muito simples e até mesmo familiar. Começa em mim, minha biografia e minhas incertezas de antes e de agora. E se estende a pessoas, algumas ainda entre nós, outras que já partiram (e terão visto “tudo”… ou “nada” do outro lado), que partilharam de um modo ou de outro os trajetos de “vida de Igreja” de que tenho falado aqui. Trajetos que eu pretendi iniciar na Ação Católica dos anos 1960 e que se estendem até, por exemplo, ao livro A arte de semear estrelas, de Frei Betto.
Olho para dentro de mim (o mais difícil dos espelhos), olho ao meu redor e vejo o quê? Vejo e percebo algo que compreendo? Compreendo algo que possa ser unificado como uma “visão comum”, como uma “vocação partilhada”, como um “mesmo horizonte de uma mesma e múltipla fé”? Ou tudo o que vejo – bem à moda de nosso tempo – são fragmentos, colagens de imagens de mim e de nós mesmos em álbuns-do-ser-quem-sou tão frágeis e mutáveis quanto tudo o que parece existir ao nosso redor?
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Devo dizer que, tal como Frei Betto, Leonardo Boff e Marcos Arruda, sou ainda um leitor de Teilhard de Chardin, e malgrado os anos de leituras obrigatórias de escritos de antropologia que o contradizem, ainda me considero alguém que sonha não deixar de crer nem na noosfera, nem no Ponto Ômega.
Olho ao meu redor e o que vejo? Rubem Alves declara, em uma entrevista publicada em um jornal, que se considera um “teólogo ateu”. Não faz muito tempo perguntei a ele, num repente ousado, quando falávamos sobre a morte (um dos seus temas mais temidos e desejados): “Rubem, pra onde você acha que vai quando morrer?” Ele me respondeu como quem passou da dúvida à certeza: “Vou voltar para o lugar de onde eu vim há milhões de anos!” E com um gesto do rosto apontou a terra e não o céu.
Leio o último livro que Frei Betto carinhosamente me enviou: A arte de semear estrelas. Neste livro, Betto se excede em clareza e beleza, leio mais um apelo ao desvelo do corpo do que à salvação da alma. Por isso, talvez este livro menos católico, pastoral e político do que os outros, terá sido até agora o seu escrito mais humanamente cristão.
E se Leonardo Boff escreveu há pouco um livro sobre São José, terá sido para revelar mais o “homem humano” como nós somos ou poderemos ser, do que o santo piegas em que o transformaram. E isto depois de haver escrito vários livros em que a “Mãe Terra” quase ocupa o lugar sagrado e supostamente único do “Deus Pai”. Escritos mais sobre o que fazer com a Terra do que sobre o que esperar do Céu, em que o apelo a uma caridade cristã restrita aos humanos estende-se à compaixão dos budistas. Uma caridade onde cabem todos os seres que conosco compartem a vida na Terra.
Leio a sós e com meus alunos os dois primeiros volumes da trilogia de livros de Marcos Arruda, publicados pela Editora Vozes. O terceiro está a caminho. Neles encontro a polissemia de afetos, de ideias, de propostas do pensar e do agir, de autores com os quais sonho, sem os mesmos efeitos, colocar em meus próprios livros. No primeiro volume da série: Humanizar o infra-humano – a formação do ser humano integral: homo evolutivo, práxis e economia solidária, Marcos Arruda abre-se a uma leitura da pessoa humana, de seu destino e do sentido de seu agir na história, que transcende até mesmo as fronteiras mais abertas do que temos chamado de pan-ecumenismo. Ele não apenas acata o diferente, mas pensa através da integração de/entre diferentes. E, assim, pensa a mensagem cristã através das propostas dos paradigmas emergentes no mundo da ciência, onde se unem Fritjof Capra, Ilya Prigogine e Leonardo Boff. Ele reescreve Teilhard de Chardin por meio de Sri Aurobindo, ali, onde Marx e Buda podem compartir igual esperança num “outro mundo possível”.
Quero imaginar pelo menos dois lugares-de-escolhas situados de um lado e de outro do que imagino serem as opções de fé destas e de outras pessoas conhecidas e amigas. Faço isto, já que acabo de citar a pessoa de Buda, para situar Marcos, Betto, Leonardo, Rubem e eu mesmo num possível “caminho do meio”, tão caro ao budismo, entre dois outros, se não opostos, pelo menos bastante divergentes.
Em um ponto ou um lugar-de-escolhas – amplo o bastante para converter-se em uma grande linha com várias e diferentes opções – reconheço pessoas, homens e mulheres de minha geração e de um semelhante “tempo de vida engajada na igreja”, e que se afastaram dela, do cristianismo e de qualquer opção de vida religiosa de maneira completa, ou quase. Entre as mais próximas, convivo com amigos para quem as perguntas que fiz acima – e que me faço com frequência – já não fazem mais parte de conversas e, segundo alguns, sequer de qualquer plano de preocupações cotidianas. Cristo terá sido um judeu ousado e um homem exemplar. Mas viveu e morreu como tantos outros, antes e depois dele. Deus não existe. Ou, no limite, se existe, nada tem a ver com o deus teísta, amoroso e implacável da tradição judaico-cristã. Melhor seria crer na “religião cósmica” proposta por Albert Einstein, ele mesmo um judeu descrente do YHVH de seus pais, para poder crer em um deus real, mesmo que cosmicamente abstrato.
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João Guimarães Rosa disse, certa feita, que “para muita coisa falta nome”. E é verdade. Falta um nome para mim. Falta um nome para dizer quem eu sou. Pra dizer quem somos nós, habitantes e viajeiros desta múltipla “diáspora da fé”. Um nome – será que isto é preciso – para a teia de uma comunidade tensa, fecunda e unitariamente diversa e dispersa, que vai de pessoas que ainda creem “numa comunidade que crê”, a quase desesperançados “teólogos ateus”. Uma comunidade de destino e de diáspora que às vezes, ao ser perguntada: “o que você é?”; ou “qual a sua religião?”; ou, ainda, “em que você crê?”, em um primeiro momento se espanta e descobre que “falta nome” para dizer em uma ou duas palavras: eu sou, no que eu creio e do que eu faço parte.
Não consegue – como eu não consigo – responder a essas perguntas com a certeza de um velho pedreiro em Itapira. Há muitos anos, ao fazer minha pesquisa indaguei sobre sua ocupação profissional: “o que o senhor é?” Ele respondeu com os olhos fixos em mim: “Eu sou um preto, um pedreiro pobre. Mas sou um crente e um salvo no Senhor. A seguir me perguntou: “E o senhor?”. Eu não soube ao certo o que responder.
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E eu… entre nós
Não tenho e nem busco no plural respostas às perguntas sobre os dilemas que vivemos, todos e cada um. Mas se posso pensar algo a partir do meu caso – ou de minha pessoa – talvez deva começar por uma boa metáfora. Nos domingos, a Catedral de Notre Dame, em Paris, abre diferentes portas. Em uma delas, lateral, entram os turistas que chegam à igreja para visitá-la. Eles percorrem os espaços não-centrais, visitam o que há para ver e fotografar, e saem por uma porta lateral oposta. Mas há uma porta central, a grande porta da catedral, é por ela que devem entrar os fiéis, aqueles que chegam para participar dos “ofícios do domingo”, as várias missas que se sucedem ao longo do dia. Algumas pessoas ficam postadas em locais próximos das entradas, para guiarem turistas e devotos entre portas e destinos diversos. Entrei duas ou três vezes pela porta central. E mesmo sem o fervor católico da juventude e dos “anos da Ação Católica” quis estar “ali” e compartilhar com outros diferentes crentes o que creio que ainda existe de crença em mim. Vivi os ritos e mesmo sem confessar os meus muitos pecados (coisa do passado?), procurei um lugar na fila da “comunidade que crê” e comunguei. Com quem? Com um deus? Com um homem que depois alguns transformaram em um deus? Ou com a comunidade de crentes daquela e de outras filas da vida e do destino? Devo dizer que em outras vezes entrei pela porta dos turistas. Se pela outra porta eu queria saber o que um deus teria feito para os seres humanos, acho que pela porta do lado eu entrei para saber o que os homens terão feito para existir um deus.
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De igual maneira teria participado de um culto de crentes budistas e faz tempo sonho com um longo retiro entre eles. Isso vale para o desejo que preservo de algum dia participar de rituais de sinagoga e de mesquita. Não pela curiosidade do antropólogo, mas por querer saber com que falas e cantos se diz a um deus de outro e mesmo rosto as palavras da fé e da crença. Tenho comigo um livro de preces cristãs, judaicas e islâmicas. Quando tenho vontade de dizer algo a deus ou ao vento, abro o livro em qualquer página e leio (e oro?) qualquer prece. Tenho também outros, com preces que se estendem de Oriente a Ocidente, e trazem nomes de deuses de povos africanos e de povos indígenas das Américas. Algumas são de fato bastante mais tocantes do que uma “Ave-Maria” e quase todas são muito menos infelizes do que a “Salva Rainha” da minha infância e adolescência. Escolho qualquer uma e digo ao deus de qualquer povo, ou de toda a humanidade e do Universo, o que em outras línguas terá sido dito muitas vezes antes de mim.
Martin Buber e Emmanuel Lévinas são dois judeus cujos livros leio, mesmo sem os compreender inteiramente. Buber, do Eu e Tu, é uma leitura “desde os tempos da JUC”. E penso que ele foi importante até mesmo para o Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire.
Lévinas é mais recente entre nós, mas existe um centro de estudos a ele dedicado no Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre.
Em 2007 saiu pela Editora Verus um novo livro de Martin Buber: Eclipse de Deus – considerações sobre a relação entre religião e filosofia. Retomando categorias de Eu e Tu, a ideia central do livro me pareceu muito simples, se é que eu a compreendi. Se há um deus (e para ele há, sem dúvida alguma), ele é dois: o deus do crente e o deus do filósofo. O deus de quem crê em deus e o deus de quem pensa sobre deus. Os dois são seres irreconciliáveis, porque em nós eles existem sob duas naturezas intocáveis. Um é o deus da relação Eu-Tu e, por isso, deve ser compreendido sem ser pensado. O outro é o deus da relação Eu-Isso. Um deus tornado objeto do pensamento, privado da subjetividade de um Tu que somente pode estar em relação comigo através de minha fé. Acho que é por isso que Emmanuel Lévinas – que se considerava um crente judeu e estudava a fundo os seus livros santos – quase nunca se lembra de citar Martin Buber.
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