Ameaça do Supremacismo Branco

Sou branco, embora com DNA negro e indígena. E tenho dúvidas se o meu inveterado otimismo, reforçado pelo fator ressurrecional de minha fé cristã – de que a vida prevalecerá sobre a morte – resistirá aos indícios de barbaridade que identifico na atual conjuntura mundial.

Alivia-me o fato de não ter gerado descendentes, tal o temor que, hoje, nutro pelo futuro da humanidade. Assino embaixo o epílogo de Machado de Assis em “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881): “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”

Se tivesse que indicar um único fator do atual desarranjo global eu apontaria o supremacismo da elite branca. Não tanto por condição de classe, e sim de espírito.

Conheço pessoas pobres imbuídas da síndrome de elitismo. Todo o Brasil viu, no governo Bolsonaro, um presidente da Fundação Palmares, negro, manifestar preconceito à sua própria etnia. Em setembro de 2021, ele criticou o movimento negro, negou que o Brasil seja um país racista e defendeu que o crime de racismo deve ser aplicado também para quem ofende pessoas brancas. “Sou o terror dos afromimizentos, da negrada vitimista, dos pretos com coleira. Não tenho medo deles”, declarou em um evento em Brasília voltado ao público conservador organizado pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP).

O elitismo racista se caracteriza por acentuada aporofobia – aversão aos pobres. A pessoa vive de aluguel, carrega uma penca de dívidas, rala para pagar as contas, mas abomina quem se encontra desempregado ou vive em situação de rua. Por ter amizades em situação melhor que a dela, julga-se classe média rumo à ascensão social. Envergonha-se de sua real situação e se alia aos alpinistas da pirâmide da desigualdade.

Trump é, hoje, o guru dessa gente. Ele usa metáforas como “imigrantes” para vomitar seu preconceito aos estrangeiros atraídos pelo “sonho americano”, embora sua terceira esposa, Melania Knauss, tenha nascido na Eslovênia. Esperto o suficiente para não ser acusado de racista e perder votos dos eleitores negros, é óbvio que a sua América é a dos “Wasp”: sigla em inglês para “brancos, anglo-saxões e protestantes”. Os racistas estadunidenses desprezam os católicos predominantemente descendentes de italianos e irlandeses.

A ideologia trumpista é a Destino Manifesto, a convicção de que o modelo estadunidense de vida deve ser levado a todos os povos. Trump é o Capitão América, personagem de histórias em quadrinhos criada em 1941, em plena Segunda Grande Guerra, para inflar o orgulho das tropas dos EUA contra as potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Ele opera prodígios e escapa de todas as ciladas preparadas por seus inimigos.

Trump se destaca como candidato presidencial acolitado por J.D. Vance, apontado como modelo de meritocracia por ter nascido em uma família interiorana de poucos recursos e se tornado rico e famoso. Sua mulher, Usha Chilukuri Vance, é filha de imigrantes. Essa rasteira ideologia estadunidense, de que o sol da prosperidade brilha para todos e basta saber alcançá-lo, como se não houvesse luta de classes, me lembra a “Reader’s Digest”, revista conhecida no Brasil de minha infância como “Seleções”, repleta de artigos centrados em convencer o leitor da supremacia dos EUA e de como tantos famosos nascidos na pobreza se tornaram exitosos magnatas.

Vance, o vice de Trump, na convenção do Partido Republicano se gabou da avó que tinha em casa 19 armas “para proteger a família”. Meus Deus! Quando se poderia imaginar que manter um arsenal em casa pudesse ser motivo de orgulho para um político!

Os EUA são uma nação bélica. Abriga apenas 4% da população mundial e, no entanto, sua população civil tem em mãos 393 milhões de armas – 40% de todas as armas em circulação no mundo.

Assim como o guru de Bolsonaro era o suposto filósofo Olavo de Carvalho, o de Vance é o cientista político Patrick Deneen, da Universidade Notre Dame. Católico fundamentalista, se tornou conhecido a partir de 2018 ao lançar o livro “Por que o liberalismo fracassou”, no qual propõe uma sociedade centrada nos valores religiosos e restrita a pequenas comunidades, sistema conhecido como “localismo”, que se opõe à globalização.

Admirador do premiê húngaro Viktor Orbán (amigo de Trump), de extrema-direita, Deneen sugere imitá-lo no controle ideológico das universidades, vetando ideias identitárias, ecológicas, sexistas e marxistas. E apoia o serviço militar e civil obrigatório para todos os jovens.

Deneen defende ainda que foi um equívoco integrar as mulheres no mercado de trabalho. Elas eram mais felizes quando se mantinham na posição de rainhas do lar…

É espantoso ver milhões de eleitoras estadunidenses fanáticas pela dupla Trump-Vance. Em março de 2023, Trump foi indiciado por ter feito pagamentos clandestinos a uma estrela de cine pornô, o famoso “cala boca”. E em maio do mesmo ano, condenado por um júri de Nova York como culpado de abuso sexual e difamação contra a escritora Elizabeth Jean Carroll, a quem teve que pagar US$ 5 milhões.

Quando a cabeça se impregna de fanatismo, os olhos ficam cegos.

Um dos fatores que mais contribuem para o fundamentalismo é a religião, que se baseia na fé, embora a teologia exija apoiar a crença na razão e não ceder ao fideísmo, a convicção de que a fé prescinde da razão e da ciência.

Sem dúvida, como vimos aqui no Brasil ao longo do governo Bolsonaro, e ainda hoje em muitas candidaturas aos governos municipais, Deus será evocado como cabo eleitoral de inúmeros candidatos.

Pesquisa feita pela Reuters/Ipsos revela que 65% dos eleitores republicanos atribuem a uma intervenção divina a sobrevivência de Trump ao escapar do atentado que lhe feriu a orelha… A vitimização martirial de um candidato sempre ajuda a alavancar sua eleição.

Embora ocorram sintomas apocalípticos em decorrência do desequilíbrio ambiental, como secas prolongadas e inundações diluvianas, Trump defende abertamente descartar energias limpas e priorizar o uso de combustíveis fósseis.

Tudo indicava que a dupla Trump-Vance seria eleita em novembro. A partir de 20 de janeiro de 2025, o mundo estaria sob o governo do supremacismo branco, racista, misógino e religioso. Um deus criado à imagem e semelhança de seus propósitos imperialistas. Ocorre que a renúncia de Biden a um segundo mandato e a indicação de Kamala Harris, mulher e negra, como candidata do Partido Democrata, agora obriga Trump a pôr as barbas de molho…

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus rebelde” (Vozes), entre outros livros.

Governo investe em Agricultura Familiar

O governo Lula acaba de ampliar o Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Em 2022/2023, os investimentos chegaram a R$ 53 bilhões. Em 2023/2024, a R$ 71,6 bilhões. Para a safra 2024/2025 serão R$ 76 bilhões, aumento de 43%.

Estão destinados R$ 1 bilhão para a garantia-safra, que assegura renda à agricultura familiar, caso a família produtora seja prejudicada por seca ou excesso de chuvas.

Compras públicas, para a aquisição de alimentos da merenda escolar e reforço da segurança alimentar, R$ 2,4 bilhões.

O Proagro Mais conta com R$ 5,9 bilhões para garantir recursos ao agricultor familiar cuja lavoura for afetada por eventos climáticos ou pragas. A Ater (Assistência Técnica e Extensão Rural), R$ 307 milhões.

O Ecoforte, que reforça a política nacional de agroecologia e produção orgânica, destinará R$ 100 milhões a 40 mil agricultores familiares.

E R$ 45 milhões à PGPM-BIO (Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade), que dá subsídios ao agricultor familiar. Por pressão do mercado, ele se vê obrigado a vender seus produtos abaixo do preço mínimo. A Conab pagará a diferença e, assim, não terá prejuízo.

Os produtos considerados da sociobiodiversidade, ou seja, orgânicos ou provenientes da agroecologia são alimentos agroecológicos que não utilizam agrotóxicos e diversificam o cultivo ao respeitar o perfil biológico de cada solo ou bioma. Além de frutas, verduras e legumes, estão incluídos açaí, babaçu, castanha do Brasil, pequi, guaraná e umbu.

Terão redução das taxas de juros tantos os produtos da sociobiodiversidade, quanto os da cesta básica: arroz, feijão, mandioca, frutas, legumes, verduras e leite.

O Programa Florestas Produtivas, de regeneração ambiental produtiva em áreas rurais e assentamentos da reforma agrária, terá financiamento de até R$ 100 mil, com taxa de juros anual de 3% e prazo de reembolso de até 20 anos.

O financiamento de máquinas de pequeno porte (microtrator, motocultivador, roçadeira, ensiladeira, estufa e implementos) passa a ter o limite de R$ 50 mil, com taxa de juros anual de 2,5%.

O microcrédito rural sobe de R$ 3,07 bilhões (safra 2022/2023) para R$ 5,94 bilhões, aumento de 94%. O programa de Inclusão Produtiva terá limite de R$ 35 mil (15 mil para mulheres; 12 mil para unidade familiar; 8 mil, jovens). E até R$ 50 mil por ano para famílias com nova renda de enquadramento.

Às mulheres rurais serão destinados R$ 60 milhões: metade para o fortalecimento de organizações produtivas e econômicas articuladas em 300 entidades de mulheres agricultoras. A outra metade destinada à promoção da autonomia econômica das mulheres rurais. O objetivo é beneficiar 3 mil agricultoras familiares.

O Pronaf Jovem melhora as condições de crédito rural para jovens agricultores de baixa renda: o limite de financiamento sobe de R$ 25 mil para R$30 mil, com redução de 3% da taxa anual de juros.

O Programa Coopera Mais Brasil destinará R$ 55 milhões para 700 cooperativas rurais. As cooperativas da agricultura familiar com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões, e os agricultores familiares com renda bruta anual de até R$ 100 mil, terão apoio de três fundos garantidores: o FGO (Fundo Garantidor de Operações); o Fundo de Aval às Micro e Pequenas Empresas (FAMPE/Sebrae); e o Fundo Garantidor para Investimentos (FGI PEAC/BNDES).

Assentados, quilombolas e indígenas terão limite de financiamento e remuneração da assistência técnica e extensão rural (Ater) de custeio limitado a R$ 20 mil (juros a 1,5% ao ano) e para investimento, R$ 50 mil (com taxa de juros anual de 0,5% e bônus de adimplência de 40%).

O financiamento para todas as etapas de regularização fundiária de imóveis rurais (incluindo despesas com serviços de georreferenciamento, tributos, emolumentos e custas cartoriais) terão limite de R$ 10 mil, com taxa anual de juros de 6%; prazo de pagamento de 10 anos, incluídos 3 anos de carência.

Todo esse investimento – que os conservadores qualificam de “gasto” – visa a incrementar a agricultura familiar. Ainda assim muito inferior ao que o governo destina este ano ao agronegócio: R$ 400 bilhões em crédito!

Espera-se agora que o Planalto acelere a efetivação dos projetos de reforma agrária, e o reconhecimento e demarcação dos territórios de quilombolas e indígenas.

Frei Betto é escritor, autor do livro “Jesus Rebelde – Evangelho da Ruptura” (Editora Vozes), entre outras obras.

Geração Z e vulgarização da política

“Alguma coisa acontece…” é não é no coração de Caetano Veloso. É na política. As recentes eleições para o Parlamento Europeu resultaram vitoriosas para a extrema-direita. Em 2019, os votos consagraram os verdes; agora, os autoritários.

Na União Europeia eleitores com menos de 30 anos preferiram votar em AfD, na Alemanha; Vox, na Espanha; Chega!, em Portugal; Vlaams Belang, na Bélgica; e Finn, na Finlândia. Exceções foram a Itália, onde a preferência recaiu sobre o Partido Democrata, de centro-esquerda, e a vitória surpreendente da esquerda nas eleições para o parlamento francês.

Muitos supunham que a Espanha, após 36 anos de ditadura do general Franco (1939-1975), jamais daria votos a propostas autoritárias. Em 2014, com apenas quatro meses de existência, o partido Podemos, de esquerda, conquistou cinco cadeiras no Parlamento Europeu e foi a quarta sigla mais votada na Espanha. Agora a direita espanhola obteve 28 cadeiras.

Com a nova composição do Parlamento Europeu, os deputados de direita e centro-direita serão 402 do total de 720, domínio de 56%. Antes, eram 396.

Em Portugal, que esteve sob a ditadura de Salazar durante 41 anos (1933-1974), o partido Chega!, de extrema-direita, mereceu 20% dos votos e ganhou 48 cadeiras no parlamento português.

Chile e Argentina, que foram governados por ditaduras militares, também assistem a ascensão da direita. No Chile, a extrema-direita do Partido Republicano tornou-se a principal força de oposição ao governo progressista ao conquistar a maioria do conselho constitucional encarregado de redigir a nova Constituição do país (rejeitada pela maioria do eleitorado em dezembro passado). Na Argentina, além da vitória de Milei – um Bolsonaro que ao menos lê jornais -, a atual vice-presidente do país, Victoria Villarruel, defendeu a Junta Militar durante a campanha presidencial, sem que isso prejudicasse sua eleição.

Essa nova conjuntura política tem um denominador comum: os votos à extrema-direita procedem, majoritariamente, de jovens de menos de 35 anos. O maior eleitorado está entre os jovens de 18 a 25 anos.

Essa geração Z são os chamados “nativos democráticos”, pois não viveram sob ditaduras nem a eles foram transmitidos os valores democráticos. E são chamados Z por serem viciados em zapear. Nasceram manipulando controles remotos e tecnologias digitais.

As ditaduras cuidam de incutir nos jovens seus “valores”, sob estrita censura à liberdade de expressão, como fizeram os militares brasileiros ao introduzir nos currículos escolares Educação Moral e Cívica e OSPB (Organização Social e Política Brasileira). As democracias não fazem educação política, não ensinam ética, não combatem preconceitos, não incutem espiritualidade (não confundir com religião) e restringem a educação sexual a aulas de higiene corporal para evitar doenças sexualmente transmissíveis…

Hoje, muitos jovens pensam que os políticos não se preocupam com eles e governam voltados apenas a seus interesses pessoais e corporativos. Usam e abusam do dinheiro público. E não demonstram nenhum apreço pelo bem comum, querem apenas ganhar eleições e permanecer no poder.

Qual jovem, hoje, considera um político alvo de sua admiração e digno de ser imitado? Minha geração teve vários, de Fidel a Mandela, de Che Guevara a Dolores Ibárruri (La Pasionaria) e Rosa Luxemburgo, de Gandhi a Luther King, de Prestes a Marighella, de Ulysses Guimarães a Teotônio Vilela.

Pesquisas demonstram que os jovens com menos de 35 anos acreditam que terão um futuro pior do que seus pais, devido à dificuldade de emprego, aos baixos salários, à violência urbana. A crença no poder da política em mudar a conjuntura findou com a Geração 68. Agora é cada um por si e Deus por ninguém… Porque a política se vulgarizou, perdeu o encanto, se deixou corromper, tragada pelo corporativismo.

Essa acentuada vulgarização da política tem sua raiz no desinteresse do eleitorado. As redes digitais desmobilizam ao esgarçar as instituições de organização coletiva (associações, movimentos, sindicatos etc.) e favorecem o individualismo. O eleitor se pergunta o que o político fez ou fará por ele. Premido pela aceleração eleitoral – ir às urnas a cada dois anos – ele sequer consegue avaliar o desempenho de quem elegeu no passado.

Os jovens já não sonham com utopias, querem soluções imediatas. Para muitos pouco importa se o mundo é capitalista ou socialista. Estão mais preocupados com suas questões identitárias, de gênero, de etnia, de orientação sexual etc. E nada interessados em identidade de classe social.

O Relatório Mundial sobre a Felicidade, deste ano, indica que os jovens são o grupo etário mais infeliz da Europa devido às preocupações que afetam toda a União Europeia: aumento do custo de vida, ameaça de pobreza e exclusão social.

Segundo Maurício Molinari, diretor do jornal La Repubblica, uma minoria de jovens ainda se mobiliza contra o aquecimento global e as guerras. A maioria está muito mais preocupada com a deterioração da qualidade de vida. Se votam na direita é por medo da pobreza e de adversidades propagadas pelas campanhas contra os migrantes, acusados de não quererem se integrar, não respeitarem as leis e disseminarem a violência.

Daí as propostas de Le Pen, na França, a favor da redução drástica dos impostos para os menores de 30 anos, de assistência financeira aos trabalhadores estudantes e subsídios à moradia. Na Holanda, o líder da extrema-direita, Geert Wilders e, na Alemanha, o AfD (Alternativa para a Alemanha), partido de extrema-direita, prometem favorecer de proteção da saúde e garantir moradias para as gerações jovens.

No Brasil, já não se vê mobilização do movimento estudantil em prol de mudanças estruturais. Nem empenho dos partidos progressistas na formação política de jovens, embora os que se encontram na faixa etária de 16 a 29 anos tenham preferido, nas eleições de 2022, Lula (51%) e Bolsonaro (20%), segundo DataFolha.

Em nome da antipolítica, a política se encontra ameaçada pelo despertar de um monstro que todos imaginavam soterrado: o nazifascismo.

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus militante” (Vozes), entre outros livros.

O gritante silêncio da Casa Branca

O que chamou atenção no frustrado golpe de Estado na Bolívia foi o clamoroso silêncio da Casa Branca. Tudo indica que, mais uma vez, a embaixada estadunidense em La Paz estava por trás. Como estiveram as representações diplomáticas dos Estados Unidos em todos os golpes de Estado perpetrados na história da América Latina.

É bom lembrar que os militares golpistas – incluído o marechal Castello Branco, que derrubou pelas armas o governo democrático de João Goulart, em 1964 – foram formados nos EUA. A Casa Branca não raciocina em termos de democracia. Raciocina em função da plutocracia, vocábulo que deriva do grego “ploutos” (riqueza) e “kratos” (poder).

Quem governa os EUA não é o titubeante Biden. É Wall Street e os interesses de lucros das grandes corporações do país. Essa gente está de olho nas riquezas minerais da Bolívia, estatizadas pelos governos de Evo Morales. Quer se apropriar do que pertence ao povo boliviano.

O país, quarto produtor mundial de estanho, produz ainda ouro, prata, cobre, tungstênio, antimônio, zinco, ferro, chumbo e volfrâmio. Abriga a maior reserva de lítio do mundo. O Brasil importa da Bolívia gás natural, óleos crus de petróleo e óleo combustível.

Não se pode abrir a guarda. As tentativas de golpes no Brasil, em 8 de janeiro de 2023, cometida pela corja bolsonarista e, este ano, na Guatemala, no intuito de impedir a posse do presidente democraticamente eleito Bernardo Arévalo, comprovam que a democracia em nosso Continente é apenas uma expressão retórica, usada e abusada pela oligarquia para assegurar seus privilégios. Nela, em princípio, o poder político decorre do voto de cada eleitor; contudo, o poder econômico se concentra em mãos de uma minoria rica. Essa poderosa minoria controla os meios de comunicação e as instituições, inclusive as religiosas, de modo a induzir os eleitores a votarem segundo os interesses da elite.

Há que salientar algo irredutível enquanto perdurar o sistema capitalista: os interesses do capital estarão sempre acima dos direitos humanos. Nada que ameace a concentração de riquezas em mãos privadas será admitido. Por isso o capital privilegia investimentos em sua defesa, ainda que a humanidade clame por recursos urgentes para combater as causas da fome, dos fluxos migratórios, do desequilíbrio ambiental.

Em 2023, os gastos com armamentos no mundo somaram 2,4 trilhões de dólares. Para se ter uma ideia desse montante, o PIB do Brasil (soma de todos os bens e serviços produzidos no país) foi de 1,9 trilhão de dólares. Toda essa fortuna para matar pessoas, não para proteger vidas. Em nome da democracia e da liberdade.

Frente à objeção de que o socialismo não é alternativa há que considerar que todos os países socialistas foram e são duramente hostilizados pelos países capitalistas. Cuba que o diga! A heroica ilha do Caribe resiste ao criminoso bloqueio “made in USA” há 62 anos! Ora, se lá é o inferno e o socialismo o pior dos mundos, por que a Casa Branca impede que milhões de turistas a visitem para constatar as falsas acusações.

O mundo ocidental, sob as botas de Tio Sam, vocifera contra a invasão da Ucrânia pela Rússia e a anexação da Crimeia. E mantém pomposo silêncio frente à ocupação ianque de Porto Rico e a anexação, pelos EUA, da base naval de Guantánamo, em Cuba. O governo de Israel promove um genocídio à população civil de Gaza sob pretexto de combate ao terrorismo e o Ocidente se cala, apoiado pelo mundo árabe.

Quando chegaremos a ser humanos?

Frei Betto é escritor, autor do romance ecoindígena “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros..

Querem abortar o aborto

A missão dos legisladores (deputados e senadores) não é impor moral à sociedade, é buscar o bem comum. Somos uma sociedade plural e laica, e não confessional. Se defendo a descriminalização da prostituição, como defendo a do aborto, não significa que aprovo a prostituição, pois a considero uma degeneração da mulher. As prostitutas, porém, têm o direito de serem protegidas por leis, como defendia Gabriela Leite, líder das meretrizes brasileiras.

Quantos antiabortistas já enviaram suas mulheres ou filhas, surpreendidas por uma gravidez indesejada, a clínicas clandestinas de aborto ou a países que admitem a interrupção da gravidez? Só terapeutas e ministros de confissões religiosas, confidentes de pessoas aflitas, podem avaliar.

O artigo 128 do Código Penal admite o aborto “se a gravidez resulta de estupro”. O estupro é crime previsto no artigo 213 do mesmo Código. Crime hediondo, pois impõe à vítima severas sequelas físicas e emocionais.

Como exigir da mulher estuprada não repudiar o feto fruto de uma agressão física e moral? Gostaria de ver um parlamentar antiabortista exigir de sua filha, violentada por um assaltante, preservar a gravidez e acolher o filho. Quem sabe ele, munido de pruridos morais, vá à prisão solicitar ao estuprador reconhecer a criança como filho e imprimir o nome paterno nos documentos de identidade…

Os que vociferam contra o direito ao aborto, proclamando defender a vida, são os mesmos que defendem que “bandido bom é bandido morto”, aplaudem a letalidade das operações policiais, exaltam torturadores e advogam o comércio generalizado de armas. E silenciam frente aos pedófilos de suas Igrejas. Haja hipocrisia!

É atitude farisaica a intransigente defesa da vida embrionária e a omissão frente a milhões de crianças nascidas na miséria, condenadas à fome e ao desamparo.

A defesa da vida não pode ser confundida com a defesa do processo embrionário desde o seu início. Do ponto de vista científico é questão aberta quando, de fato, há vida humana. Como escreve o teólogo Jesús Martínez Gordo, a questão deve se basear “no reconhecimento da existência de situações-limite e conflitos de direitos em que é impossível aplicar dedutivamente as normas morais: a única coisa que resta, talvez, é aceitar o mal menor, como pode ser visto nos casos de perigo para a vida da mãe, malformação do feto e gravidez por estupro. Entendido dessa forma, o aborto não é mais um direito, mas sim um recurso desesperado diante do instinto de sobrevivência. Em suma, o mal menor que, em nome da solidariedade, do respeito e do acompanhamento a quem passa por situações tão dramáticas, está acima de qualquer imposição extrínseca.”

Segundo Bernhard Häring, um dos mais destacados moralistas católicos, “não cabe ao Magistério da Igreja resolver o problema do momento preciso a partir do qual nos encontramos diante de um ser humano no pleno sentido do termo.”

Na tradição cristã convivem diferentes teorias, a da “animação sucessiva” defendida por meu confrade Santo Tomás de Aquino, e a da “animação simultânea”, por Santo Alberto Magno. A biologia comprova que o embrião requer tempo e espaço para desenvolver seu sistema neuroendócrino. Genes não são miniaturas de pessoas. A biologia molecular demonstra que a informação extragenética é tão importante quanto a informação genética, e a constituição da substantividade humana ocorre quando há organogênesis do embrião.

O machismo e a misoginia predominantes no Congresso se refletem inclusive na proposta de fazer o peso da sentença condenatória cair mais forte sobre a mulher violada que sobre o criminoso tarado.

Nosso Congresso deveria estar discutindo como introduzir a educação sexual em todos os níveis escolares, bem como o planejamento familiar.

Descriminalizar o aborto não significa incentivá-lo. Não devemos admitir que nossos parlamentares estuprem a Constituição e violentem um direito adquirido.

Frei Betto é escritor e educador popular, autor de “Jesus rebelde” (Vozes), entre outros livros.