Cheguei aos 80!

A vida é essa poeira que vendaval levanta na rua e espirala desencontrada no espalho dos desrumos, surpresando sempre.

Nunca pressenti morrer cedo ou tarde, exceto na prisão sob a ditadura militar. Ali tive dúvidas se sairia vivo. Preparei-me para o desfecho final. A tortura era recorrente; a tensão, permanente; as transferências, frequentes (oito cárceres em 4 anos, sendo que os dois últimos anos entre presos comuns).

Entre presos políticos a temperatura letal atingiu o ponto máximo durante os sequestros de diplomatas. Da cadeia, assisti a três: do cônsul japonês em São Paulo (março, 1970); e dos embaixadores alemão (junho, 1970) e suíço (dezembro, 1970). Esta última ação resultou na libertação de frei Tito de Alencar Lima, banido do Brasil pela ditadura.

Enquanto os sequestradores pressionavam o governo, no cárcere as visitas eram suspensas, inclusive de advogados, e a guarda das muralhas, reforçada. Não seria surpresa se houvesse fuzilamento, conforme as ameaças.

Fora aquele período, nada me fez pressentir a morte. Nem os acidentes de trânsito pelos quais passei. O mais grave na adolescência, quando o carro dirigido por Toninho da Matta (que mais tarde se tornou premiado automobilista) se chocou com outro e capotou. Nem escoriações tive.

Doenças, as previstas: sarampo, catapora etc. e sarna ao morar em favela. Em 2020, recebi um stent. Escapei (até agora) da Covid, mas tive dengue na década de 1980. A vida tem duas fases, a da sorveteria e a da farmácia. Já ingressei na segunda…

Em setembro de 1985, aos 41 anos, uma cartomante previu que eu viveria até os 57. Dei fé, sem me inquietar, porque a vidente russa fizera uma previsão que comprovara seu talento: de que dentro de dois meses eu seria muito conhecido em um país estrangeiro. Ela não sabia quem eu era nem o que fazia. Apenas meu nome de registro (que não é o religioso e literário) e a data de nascimento.

A consulta se deu por mero acaso. Fui devolver um livro a um casal amigo e lá estava ela no apartamento com suas cartas e búzios. O fato é que, em novembro daquele ano, saiu em Cuba o livro “Fidel e a religião”, com a longa entrevista que me foi dada pelo líder comunista. Os 300 mil exemplares da primeira edição não foram suficientes para atender a demanda.

Completei 57 em 2001 e nem resfriado tive. Desconfio de que Deus decidiu ampliar meu prazo de validade. E agora chego aos 80 com a mesma disposição dos 40: muitas viagens a trabalho pelo Brasil e exterior; palestras; assessorias; artigos semanais; e vários projetos literários a terminar e iniciar.

Por coincidência, acabo de colocar ponto final no 80º livro, que destrincha o Evangelho de João, destinado a completar a tetralogia editada pela Vozes. Já foram lançados o de Marcos (Jesus militante) e o de Mateus (Jesus rebelde). Em breve sai o de Lucas (Jesus revolucionário). Agora passo a trabalhar em novo romance.

Aos 60 anos, ao visitar uma escola, um aluno de 10 indagou quantos livros eu havia escrito. Respondi 50. Ele calculou em silêncio e reagiu: “Quer dizer que o senhor começou a escrever com dez anos?”

Meus parentes e amigos se queixam de que já não dispõem de prateleiras para guardar tantos livros meus. Meu sobrinho-neto, Lucas, aos 8 anos, disse a minha mãe: “Tio Betto escreve muito porque não trabalha…” E Ricardo Kotscho sugere que mantenho no sótão do convento, a pão e vinho, uma equipe de fradinhos que escrevinha o que publico.

Somos uma família de sete irmãos (cinco homens e duas mulheres. Éramos oito, mas Tonico, o caçula, Deus o amava tanto que apressou a transvivenciação dele). Meus irmãos geraram meus 16 sobrinhos e 24 sobrinhos-netos. Graças a Deus todos amigos sem nenhuma desavença entre nós.

A que atribuo meus saudáveis 80 anos? Primeiro, à genética. Meu pai transvivenciou aos 89 e, minha mãe, aos 93. Depois, a fatores que qualquer especialista em longevidade, como meu amigo Jorge Félix, ressalta: boas amizades (Aristóteles considera a condição número um para ser feliz); bom humor; meditação/oração; leituras; exercícios físicos; e alimentação balanceada. Sobretudo não esquentar a cabeça. Como dizia Oscar Wilde, “a vida é muito importante para ser levada a sério”.

Como filho da mãe (Maria Stella Libanio Christo, uma das mais renomadas culinaristas de Minas), aprecio a boa mesa, mas me satisfaço com pouco e o trivial. Doce, só não resisto à minha indispensável “madeleine”: goiabada com queijo. Desde que o queijo seja frescal e a goiabada vermelha como rótulo de Coca-Cola (que não suporto). De goiabada escura desconfio de mistura…

Peregrino de Deus, viajo a bordo do paradoxo. Como versou o poeta português Antônio Gedeão, “minha aldeia é todo o mundo”. Sempre a trabalho, como discípulo inveterado de São Domingos e confrade de Tomás de Aquino, Giordano Bruno e Bartolomeu de las Casas, andei por quatro continentes e, ainda hoje, retorno ao convento para trocar de mala. Como diz o Kotscho, “Deus está em todo lugar. Betto já esteve…”

Sei que todos temos prazo de validade (e defeito de fabricação, que a teologia chama de pecado original). Achava que a rainha Elizabeth II era exceção… E não me apego à vida, embora não queira apressar os designíos divinos. Só espero não dar trabalho a terceiros. Nem tentar enganar a dama da foice com essa parafernália hospitalar que onera os planos de saúde e engorda o faturamento dos hospitais.

Já posso dizer: viciado em utopia, sou feliz. E fiz muita gente feliz. Mereci até biografias. Melhor ter biografia do que obituário…
E com todo respeito aos meus amigos e amigas espíritas, não quero voltar. Prefiro a vida eterna. Por acreditar que é terna. Se não for, paciência. Valeu a pena esta existência. Já não tenho medo de nada nem do nada.

Enfim, como escrevi em “A arte de semear estrelas” (Rocco), “não sei se a minha vida é correta / Sei apenas, não é linha reta. / Plena de curvas, arredonda ângulos, / Ergue pontes sobre águas turvas.”

Frei Betto – Biografia” – Américo Freire e Evanize Sydow, prefácio de Fidel Castro (Civilização Brasileira, 2017).

Beba, mate e fique livre

A mídia registra, com frequência, inúmeros casos de acidentes de trânsito com mortes, provocadas por motoristas embriagados por álcool e/ou ódio.

Casos recentes são o do empresário Fernando Sastre Filho, de 24 anos, que em abril deste ano, na capital paulista, no volante de seu Porsche de R$ 1,3 milhão, acelerado a mais de 300km/h, se chocou com o veículo do motorista de aplicação Ornaldo da Silva Viana, matando-o.

No Rio, o “influenciador” Vitor Vieira Belarmino, de 30 anos, em julho atropelou Fábio Toshiro que havia se casado horas antes. No Porsche e no BMW dos culpados foram encontrados sinais de ingestão de bebidas alcoólicas.

Em São Paulo, também em julho, outro Porsche, conduzido pelo empresário Igor Sauceda, de 27 anos, saiu em perseguição ao motoboy Pedro Figueiredo, de 21, atropelou-o e matou-o. O motociclista teria quebrado o retrovisor do carro.

Muitos assassinos de trânsito são detidos e, graças à fiança, em seguida soltos. Detalhe: sem que suas carteiras de motoristas sejam apreendidas. Alguns, aliás, nem possuíam habilitação para dirigir.

O Brasil é o país da impunidade. As leis são feitas apenas para os pobres – que não têm dinheiro para pagar advogados e fianças. Da classe média para cima, nenhum assassino do volante costuma ficar preso. Nem condenado em última instância. Ocorre 1,2 morte por hora no trânsito do Brasil, associada ao alcoolismo. Vale, pois, a pergunta: quem é a próxima vítima?

O Brasil é também o país do paradoxo. Há intensa campanha contra o tabagismo. Daqui a pouco haverão de proibir, como nos EUA, até fumar em local público. E, não demora, dentro de casa, sob pretexto de que incomoda os vizinhos…

A publicidade de cigarros desapareceu da mídia. As embalagens de tabaco trazem fotos horripilantes dos efeitos deletérios do produto. Ora, o alcoolismo mata mais que o tabagismo. É o terceiro fator de morte no mundo, precedido pelo câncer e doenças cardíacas. Por que não se proíbe publicidade de bebidas alcoólicas?

Dados de 2023 apontam que 18,8% da população brasileira (cerca de 40 milhões de pessoas) abusam da ingestão de álcool. Nos hospitais psiquiátricos, 90% das internações são de dependentes de álcool. Os motoristas bêbados são responsáveis por 65% dos acidentes de trânsito. E o Ministério da Saúde gasta, por ano, via SUS, mais de R$ 1 bilhão em tratamentos e internações causados por álcool.

Segundo o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas e Psicotrópicos, vinculado à Faculdade Paulista de Medicina, entre estudantes do primeiro e segundo graus da rede estadual de São Paulo, 70,4% se iniciam na bebida entre 10 e 12 anos. Nos EUA é índice, para a mesma faixa etária, é de 50,2%.

Volto à pergunta que não quer calar e o governo, o Conar e as agências de publicidade insistem em não responder: por que não se aplicam as leis de proibição do tabagismo ao álcool?

A resposta existe, o que não existe é a coragem de fechar a torneira do mar de dinheiro que a publicidade de bebidas alcoólicas despeja na publicidade. E o mais grave: associa-se álcool a celebridades, como jogadores de futebol e cantores, que fascinam os mais jovens e atraem legião de fãs.

Uma grande emissora de TV anuncia uma série de programas antitabagistas. Quando veremos algo semelhante em relação ao consumo de álcool?

Nunca tive notícia de acidentes de trânsito causados por vício de fumar, agressão doméstica por aspirar fumaça de tabaco, internação psiquiátrica por dependência de cigarro. Todos nós, porém, conhecemos casos relacionados ao alcoolismo. E haja publicidade de cerveja no horário nobre! Para os jovens, a cerveja é a porta de entrada no consumo de bebidas etílicas.

O cigarro prejudica quem fuma e quem está próximo ao fumante. O álcool, misturado com volante, gera acidentes que envolvem passageiros do veículo causador do acidente, passageiros dos veículos atingidos por ele, e pedestres, além de danos à via pública.

Álcool em excesso transtorna os reflexos. Associado ao volante, é perigo na certa. Mas não se preocupe. Você está no Brasil. Confia de que jamais passará pelo azar de ser parado por uma blitz da lei seca. Se acontecer, oferecerá uma grana aos fiscais, na esperança de que sejam corruptos. Caso não sejam, se recusará a pôr a boca no bafômetro. Se for detido, convocará a família e o advogado, pagará fiança e logo estará na rua. Com a carteira de habilitação no bolso. Pronto para se dependurar no volante e repetir a façanha.

Vivam o Brasil e a impunidade! E azar das vítimas por viverem num país como o nosso!

Frei Betto é escritor, autor do romance “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Criança: cidadã, ou consumista?

Precisamos refletir sobre o que temos feito com as nossas crianças. Estamos formando futuros cidadãos ou consumistas? Pesquisas indicam que as crianças brasileiras costumam passar 4 horas por dia na escola e o dobro de olho em equipamentos eletrônicos. Impressiona o número de peças publicitárias destinadas a crianças ou que as utilizam como isca de consumo.

A pesquisadora Susan Linn, da Universidade de Harvard, constatou que o excesso de publicidade causa nas crianças distúrbios comportamentais e nutricionais. De obesidade precoce, pela ingestão de alimentos ricos em açúcares ou gorduras saturadas, como refrigerantes e frituras, à anorexia provocada pela obsessão da magreza digna de passarela.

Sexualidade precoce e desajustes familiares são outros efeitos da excessiva exposição à publicidade. São menos felizes, constatou a pesquisadora, as crianças influenciadas pelas ideias de que sexo independe de amor, a estética do corpo predomina sobre os sentimentos, a felicidade reside na posse de bens materiais.

Impregnada desses falsos valores, tão divulgados como absolutos, a criança exacerba suas expectativas. Ora, sabemos todos que o tombo é proporcional ao tamanho da queda. Se uma criança associa felicidade a propostas consumistas, tanto maior será sua frustração e infelicidade, seja pela impossibilidade de saciar o desejo, seja pela incapacidade de cultivar a autoestima a partir de valores enraizados em sua subjetividade. Torna-se, assim, uma criança rebelde, geniosa, impositiva, indisciplinada em casa e na escola.

A praga do consumismo é, hoje, também uma questão ambiental e política. Montanhas de plástico se acumulam nos oceanos e a incontinência do desejo dificulta cada vez mais uma sociedade sustentável, na qual os bens da Terra e os frutos do trabalho humano sejam partilhados entre todos.

Um dos fatores de deformação infantil é a desagregação do núcleo familiar. No Dia dos Pais um garoto suplicou ao pai, em bilhete, que desse a ele tanta atenção quanto dedica à TV… Um filho de pais separados pediu para morar com os avós após presenciar a discussão dos pais de que, um e outro, queriam se ver livre dele no fim de semana.

Causa-me horror o orgulho de pais que exibem seus filhos em concursos de beleza. Uma criança instigada a, precocemente, prestar demasiada atenção ao próprio corpo, tende à esquizofrenia de ser biologicamente infantil e psicologicamente “adulta”. Encurta-se, assim, seu tempo de infância. A fantasia, própria da idade, é transferida à TV e ao apelo de consumo. Não surpreende, pois, que, na adolescência, o vazio do coração busque compensação na ingestão de drogas.

Com frequência pais me indagam o que fazer frente à indiferença religiosa dos filhos adolescentes. Respondo que a questão é colocada com dez anos de atraso. Se os filhos fossem crianças, eu saberia o que dizer: ore com eles antes das refeições; leiam em família textos bíblicos; evitem fazer das datas litúrgicas meros períodos de miniférias, como a Semana Santa e o Natal, e celebrem com eles o significado religioso dessas efemérides; incutam neles a certeza de que são profundamente amados por Deus e que Deus vive neles.

Crianças são seres miméticos por natureza. A melhor maneira de interessar um bebê em música é colocá-lo ao lado de outro que já tenha familiaridade com um instrumento musical. Ora, o que esperar de uma criança que presencia os pais humilharem a faxineira, tratarem garçons com prepotência, xingarem motoristas no trânsito, jogarem lixo na rua, passarem a noite se deliciando com futilidades televisivas?

Criança precisa de afeto, sentir-se valorizada e acolhida, mas também de disciplina e, ao romper o código de conduta, de punição sem violência física ou oral. Só assim aprenderá a conhecer os próprios limites e respeitar os direitos do outro. Só assim evitará tornar-se um adulto invejoso, competitivo, rancoroso, pois saberá não confundir diferença com divergência e não fará da dessemelhança fator de preconceito e discriminação.

É preciso conversar com elas, através da linguagem adequada, sobre situações-limites da vida: dor, perda, ruptura afetiva, fracasso, morte. Incutir nelas o respeito aos mais pobres e a indignação frente à injustiça que causa pobreza; senso de responsabilidade social (há dias vi alunos de uma escola varrendo a rua), de preservação ambiental (como a economia de água), de protagonismo político (saber acatar decisão da maioria e inteirar-se do que significam os períodos eleitorais).

Se você adora passear com seu filho em shoppings, não estranhe se, no futuro, se tornar um adulto ressentido por não possuir tantos bens finitos. Se você, porém, incutir nele apreço aos bens infinitos – generosidade, solidariedade, espiritualidade – ele se tornará uma pessoa feliz e, quando adulto, será seu companheiro de amizade, e não o eterno filho-problema a lhe causar tanta aflição.

Saber educar é saber amar.

Frei Betto é escritor, autor do livro infantil “Os anjos de Juliana” (Mercuryo Jovem), entre outras obras.

Frei Tito, Ressurreição pela poesia

Frei Tito de Alencar Lima simboliza todos os torturados pela ditadura militar brasileira (1964-1985). Tinha 28 anos ao ser induzido ao suicídio em 10 de agosto de 1974 por tantas sevícias, choques elétricos, queimaduras na pele e pancadas na cabeça sofridos no DOPS de São Paulo, em novembro de 1969, e no DOI-CODI, em fevereiro de 1970. Seu silêncio ecoou. E salvou vidas.

Convivi anos com Tito, desde a adolescência, quando éramos dirigentes da JEC (Juventude Estudantil Católica). Partilhávamos em segredo nosso projeto vocacional: abraçar a vida religiosa na Ordem Dominicana. Moramos no mesmo convento, estudamos juntos filosofia, atuamos da resistência à ditadura e dividimos a mesma cela de prisão.

Tito era uma alma poética. Passava horas recolhido em oração ou dedilhando o violão que recebeu no cárcere. Libertado em janeiro de 1971 em troca do embaixador suíço, que havia sido sequestrado, no exílio Tito escreveu “Quando secar o rio da minha infância”.

Atordoado por alucinações decorrentes das alterações psíquicas provocadas pelas torturas, recorreu à infância feliz em Fortaleza em busca de salvação:

“Quando secar o rio da minha infância / secará toda dor. / Quando os regatos límpidos de meu ser secarem, / minh’alma perderá sua força. / Buscarei, então, pastagens distantes / irei aonde o ódio não tem teto para repousar.”

O rio benfazejo da infância corria em seu coração, mas suas águas se exauriam, bem como os “regatos límpidos” de seu ser. A correnteza se transformara no dilúvio que o afogava por dentro. Só lhe restava uma esperança, típica de sua paisagem ancestral: a seca. Seca é supressão de vida, aridez. Ela lhe traria o ocaso. A alma feneceria. Então ele seria levado a “pastagens distantes”, lá onde se encontra o Paraíso, lá “onde o ódio não tem teto para repousar”. Peregrino de Deus, “ali, erguerei uma tenda junto aos bosques”.

“Todas as tardes me deitarei na relva, / e nos dias silenciosos farei minha oração. / Meu eterno canto de amor: expressão pura de minha mais profunda angústia.”

O rio e os regatos secaram. No entanto, a morte lhe trouxe vida. Nas “pastagens distantes” não há ódio, só amor, e ali ele expressava sua “mais profunda angústia”. A catarse. Por isso, armou ali a sua tenda ao frescor e à sombra dos bosques. Tito agora já podia se deitar na relva, ouvir o silêncio dos dias e proferir sua oração: “eterno canto de amor”. Esse canto o libertava.

“Nos dias primaveris, colherei flores para /meu jardim da saudade. / Assim, exterminarei a lembrança de um passado sombrio.”

Despontavam os “dias primaveris”. O inverno e o inferno haviam ficado para trás. Agora podia colher flores para seu jardim da saudade. Não dos tempos lúgubres. Saudade do futuro, no qual “secará toda dor”. Assim, já não há “lembrança de um passado sombrio”.

Adélia Prado homenageia Frei Tito no poema “Terra de Santa Cruz” (1981):

“Porque o frade se matou / no pequeno bosque fora de seu convento.”

Por que não o detiveram?

“Onde estavam o guardião, o ecônomo, o porteiro, / a fraternidade onde estava quando saíste, / ó desgraçado moço da minha pátria, / ao encontro desta árvore?”

A poeta, contudo, sabe que “os torturadores todos enlouquecem ao fim, / comem excrementos, odeiam seus próprios gestos obscenos, / os regimes iníquos apodrecem”.

Clara de Góes em “A Frei Tito”, observa:

“o corpo se insurge / no jovem padre / enforcado na manhã/ cinzenta em que os anjos dormiam __ / um pouco mais.”

Affonso Romano de Sant’Anna, no poema “O torturado e seu torturador”, pergunta:

“O que procura o tortura-dor / nas pedras do rim alheio / como vil minera-dor? / O que ama esse ama-dor / da morte? / esse morcego suga-dor / sob os porões da corte? / esse joga-dor / de jogo bruto / e cria-dor do luto?

“Sob a tortura / o que há de melhorar no homem / jamais se manifesta. Quando muito / podeis catar no chão / o pouco que dele resta. / Mas soltai-o em festa, ao sol, / e vereis que a verdade / de seus gestos se irradia.

“Livre, / vestindo a pele do dia, / o torturado caminha / com seu corpo tatuado / de violência e poesia.

“Mas ele não marcha só. / Apenas segue na frente / na direção da utopia.”

Com seu ousado gesto, Frei Tito resgatou a dignidade de todos aqueles que se matam, não por covardia, mas pela coragem de não se resignarem à loucura que os faz estranhos a si mesmos. Estilhaçado, o espelho interior já não lhes permite contemplar amorosamente a sua face mais íntima. Então buscam, atrás dos cacos, o perfil original. Como filhos pródigos que tiveram suas vidas gastas pela dor, são acolhidos em festa pelo Pai/Mãe de Amor.

Frei Betto é escritor, autor de “Batismo de sangue” (Rocco), entre outros livros.