Antídoto à violência: Educação Política

A violência é inata aos animais. E o ser humano não é exceção. Não há ninguém que tenha conseguido evitar uma atitude violenta ao longo da vida, seja a violência física ou verbal, ou mesmo silenciosa, de quem vira as costas a um interlocutor ou mira com desprezo um semelhante.

Nem Jesus foi exceção. Violou, a chicotadas, os supostos direitos dos cambistas do Templo de Jerusalém, que transformaram a casa de Deus em “covil de ladrões” (João 2,13-22); depreciou Herodes Antipas, governador da Galileia, ao xingá-lo de “raposa” (Lucas 13,31-32), e os saduceus e fariseus de “hipócritas”, “sepulcros caiados”, “raça de víboras” (Mateus 23,13-32).

Há ainda outras formas de violência, como sonegar o salário do trabalhador, prestar falso testemunho, divulgar fake news. Violência é o ato de violar a dignidade e/ou um direito de uma pessoa ou da natureza. Quando jogamos lixo em um rio ou lagoa cometemos um sério ato de violência. Ou quando repudiamos com nojo um pedinte maltrapilho que suplica por uma esmola.

A violência é, hoje, estrutural e cultural. Está no âmago do sistema capitalista, que engorda suas fortunas ao acumular o que é negado a milhões de pessoas. Não há pobres, há sim pessoas empobrecidas em decorrência da prioridade do capital em relação aos direitos humanos. A verticalização da riqueza produz a horizontalização da pobreza e da miséria. É o que o marxismo denomina, adequadamente, de “luta de classes”.

Como evitar que a carência do oprimido se transforme em ressentimento e ódio? Quando esses sentimentos negativos implodem a paciência abnegada do oprimido, ele se sente no dever (e, muitas vezes, no direito) de roubar, assassinar, ignorar a lei e a ordem, e buscar, à sua maneira, um lugar ao sol. Se o oprimido é uma coletividade consciente da violação de seus direitos, sua reação pode resultar em terrorismo ou movimento revolucionário.

O direito à autodefesa armada é o último recurso de quem se encontra diante de um opressor que não conhece outra linguagem senão a das armas. Quando isso ocorre? Ocorre quando o opressor suprime todas as vias democráticas e não deixa ao oprimido alternativa fora da submissão abjeta ou da reação armada.

Se queremos evitar situações extremadas o caminho é fortalecer a democracia. Sabemos que, nessa era do Capitaloceno, hegemonizada pelo capitalismo, predomina um simulacro de democracia. Os eleitores votam, mas quem governa é a elite, os donos do dinheiro. A equidade eleitoral que existe na esfera da política é socialmente negada na esfera da economia. Todos têm direito ao voto, mas não ao pão nosso de cada dia.

A democracia se fortalece pelo empoderamento dos movimentos populares, sejam eles sociais, sindicais, pastorais, étnicos ou identitários. Isso exige conscientização, organização e mobilização, que se alcança pela educação política. Todos nós sofremos um processo avassalador de deseducação política, seja pela naturalização das desigualdades sociais, pelo fundamentalismo religioso que desloca o direito à felicidade para as esferas celestiais, pela exaltação da meritocracia, pela disseminação do medo, pela associação entre democracia e capitalismo.

As armas ideológicas do opressor são bem conhecidas: os grandes veículos de comunicação, a cultura do entretenimento e, sobretudo, as plataformas digitais, aprimoradas pelos algoritmos e pela inteligência artificial. Frente a isso não nos resta alternativa senão aprofundar a educação política de todos os segmentos sociais que têm os seus direitos sonegados pela violência estrutural. Caso contrário, jamais a violência deixará de marcar o compasso da história, e a paz, como fruto da justiça, continuará a figurar como mera utopia.

Frei Betto é escritor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de “Essa escola chamada vida”, entre outros livros.

Gustavo Gutiérrez, perfil amigo

Gustavo Gutiérrez (1928-2024) pode, com razão, ser considerado o pai da teologia da libertação, pois foi o primeiro a publicar um livro com esse título, em 1971, pela espanhola Ediciones Sígueme. Ele mesmo não negava a importância, para seu trabalho, da visita feita ao Brasil em 1969, quando esteve em contato com nossas Comunidades Eclesiais de Base e experimentou, de perto, o drama do assassinato – ainda hoje impune – do assessor da juventude de Dom Helder Camara, o padre Henrique Pereira Neto, estrangulado e baleado no Recife, em 26 de maio de 1969.

Gustavo dedicou sua Teologia da libertação ao sacerdote assassinado pela ditadura e ao romancista peruano José María Arguedas. Apesar disso, não é possível negar em sua obra as raízes europeias provenientes do humanismo integral de Jacques Maritain, do personalismo engajado de Mounier, do evolucionismo progressivo de Teilhard de Chardin, da dogmática social de De Lubac, da teologia do laicado de Congar, da teologia do desenvolvimento de Lebret, da teologia da revolução de Comblin, ou da teologia política de Metz.

O Concílio Vaticano II incentivou as condições para que fosse cortado o cordão umbilical que mantinha a teologia da América Latina dependente do útero da mãe Europa. Ao se iniciar a década de 1960, a revolução cubana, o fracasso da Aliança para o Progresso, a crise do modelo desenvolvimentista e o crescimento de movimentos de esquerda não ligados aos partidos comunistas tradicionais, foram fatores que levaram os teólogos latino-americanos a enraizar seu pensamento no solo que pisavam. Não que fosse uma questão de procurar por categorias que permitissem uma reinterpretação de fatos sociais e políticos. O motor da teoria era a prática das comunidades populares cristãs, enraizada na luta por conquista de direitos – conforme transformavam o mundo, também alteravam o modelo da Igreja.

Mudança social e eclesiogênesis estão, em última instância, ligadas. A construção de um projeto político alternativo não deixa a Igreja intocada, como se fosse uma comunidade de anjos pairando acima das contradições que atravessam a trama da sociedade. O elemento novo era a consciência, alcançada na vida em comum das Comunidades Eclesiais de Base, de que a Igreja não é apenas o papa ou os bispos, mas o povo de Deus a caminho na história. E a presença deste povo crente e oprimido nos movimentos sociais da América Latina marcou a fé com um caráter crítico que fez nascer a teologia da libertação.

Um teólogo indígena

Na VII Conferência Internacional da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT) em Oaxtepec, México, em dezembro de 1986, o teólogo negro norte-americano James Cone se queixou que a teologia da libertação latino-americana era demasiado branca. O estranho é que, a seu lado, estava Gustavo Gutiérrez, de aparência tipicamente indígena: pele marrom, rosto redondo, baixo e atarracado, com olhos ligeiramente amendoados que revelavam sua ascendência quéchua. Em casa, seu pai falava esse idioma do antigo império inca. Porém, mais que língua e aparência, Gustavo herdou o estilo dos ameríndios andinos. Isso surpreendia qualquer pessoa que o conheceu: combinava – não sem alguns conflitos – uma mente dotada de inteligência rápida e racional, magisterial, que se expressava linguagem construída como partes de um instrumento de precisão, e uma sensibilidade que desarmava todos os modelos da moderna racionalidade. Nele coexistiam o intelectual formado em Louvain – onde foi colega de Camilo Torres e defendeu tese baseada em Freud – e o ameríndio do altiplano peruano. Isto lhe permitia entrar numa sala de aula sem ser notado – como que deslisando sobre os próprios pés – ou visitar seu amigo Miguel d’Escoto sem que ninguém mais percebesse sua presença em Manágua. É como se ele pudesse viajar, não apenas nas estradas acessíveis a viajantes urbanizados, mas também em trilhas e picadas que só os habitantes da selva conhecem. Esse dom ancestral lhe permitia dominar uma nova língua, um novo campo de conhecimento, ou passar através de Nova York, Paris ou Bonn, como um ameríndio se esgueirando entre árvores e folhas, observando sem ser observado, rápido como um pássaro e discreto como uma lhama.

Esta característica permitiu que ele trabalhasse no rascunho do famoso documento de Medellín, aprovado pela Conferência Episcopal Latino-americana em 1968 – um texto que se tornaria fundamental à prática e teoria da Igreja dos pobres na América Latina. Certa ocasião, Gustavo chegou a Roma exatamente quando os bispos peruanos discutiam os trabalhos dele com os mais altos dignitários da Cúria. Quem pode jurar que o texto final, mais favorável a ele que o rascunho original, não tenha sido redigido pela própria pena de Gustavo?
Discreto como um capuchinho, ele se movimentava no domínio político dos conflitos teológicos com toda a sutileza de um jesuíta. Embora sua expressão às vezes revelasse aquela angústia metafísica característica das pessoas para quem a linha estreita que separa a morte da vida é familiar, nunca entrava em pânico, e sua aguda intuição era capaz de apresentar soluções imediatas a problemas complicados, como se tivesse meditado durante anos sobre uma questão que acabara de surgir. Conseguia ficar sentado durante horas em um banco de aeroporto, escrevendo um artigo ou escutando alguém, mordendo nervosamente o tempo todo um palito com seus dentes fortes, ligeiramente separados. Dava respostas quase sempre ironicamente divertidas, como se estivesse armando uma adivinhação. Ao ministrar aulas e conferências, seguia um padrão rígido tão cuidadosamente montado que dava a impressão de ter ornamentado seu texto. Suas piadas conferiam às palavras um sabor todo seu, porque era sempre capaz de manifestar aquela rara virtude que tanto o tornava encantador: o humor. Seu senso de humor lhe permitia manter certa distância crítica de qualquer fato. Não admitia ser traído pela emoção, porque sabia que nada de humano merece ser levado demasiado a sério.

Convivi com Gustavo Gutiérrez em Puebla, em janeiro e fevereiro de 1979, durante a Terceira Conferência Episcopal Latino-americana. Nessa ocasião, o nome dele, do mesmo modo que o de outros teólogos da libertação, tinha sido excluído da lista de assessores oficiais. Sem acesso direto ao local de encontro dos bispos, muitos prelados vinham até ele em busca de ajuda, o que o obrigava a passar noites inteiras elaborando rascunhos e propostas. Estávamos todos alojados precariamente em dois apartamentos sem mobília, que raramente tinham água e cujos banheiros careciam de luz. Sobrevivíamos com algum maná caído do céu, porque não havia cozinha, e nos restaurantes da cidade seríamos presas fáceis da imprensa internacional, sempre em busca de um teólogo para decifrar a linguagem eclesiástica dos textos, ou dar uma entrevista exclusiva que confirmasse a natureza rebelde ou herética da teologia da libertação…

Depois de driblar todos os correspondentes estrangeiros durante dias, na tarde do domingo, 4 de fevereiro de 1979, Gutiérrez aceitou a sugestão do Centro Mexicano de Comunicación Social (Cencos) de realizar uma coletiva de imprensa no hotel El Portal. Em seus comentários, enfatizou que a teologia da libertação não tinha planejado começar por uma reflexão sobre os pobres. Os próprios pobres, agentes da transformação histórica, iniciaram essa reflexão teológica. O objetivo da teologia da libertação é dar aos pobres o direito de pensar e se expressar teologicamente. Quanto mais os jornalistas o pressionavam para deixar escapar algo que pudesse soar como heresia, tanto mais Gutiérrez se mostrava fiel aos pobres e à Igreja. Era mestre em reconciliar polos aparentemente opostos.

Encontrei-me com ele em diferentes ocasiões, quase todas em seu escritório – a “torre” de Rimac, bairro pobre de Lima. Decididamente, um dos escritórios mais desordenados que jamais vi. Espalhados e misturados no chão estavam latas de Coca-Cola e livros do cardeal Ratzinger. Havia garrafas em cima de documentos papais, fios elétricos desgarrados perambulavam entre papéis empoeirados. Não havia o menor indício de que um espanador havia estado lá desde a chegada de Francisco Pizarro ao Peru. Apesar disso, aquela confusão tinha lógica para ele. Sabia exatamente onde encontrar cada coisa. Era em meio àquele monte de papéis que ele devorava os livros que recebia. Quando sentia fome, comia ali perto alguma refeição comum indefinida, junto com desempregados e subempregados.

Gutiérrez sempre preferiu ler a escrever. Tinha seu próprio método de leitura dinâmica, como se dotado de uma antena que lhe dizia qual a qualidade do conteúdo de uma obra. Escrever, para ele, era um parto doloroso. Quando o fazia, admitia que chegar à versão final exigia-lhe sacrifício. Sempre considerava um texto como provisório, a ser revisto e melhorado. Por isso, quase todas suas obras começaram como palestras mimeografadas. É provável que seja autor de muitas obras não publicadas, conhecidas só por pequeno círculo de leitores. Em geral, nem sequer assinava os textos mimeografados, que incluíam excelente introdução às ideias de Marx e Engels e o relacionamento que mantiveram com o Cristianismo.

Em janeiro de 1985, na véspera da visita do Papa João Paulo II a Lima, eu o encontrei na “torre” de Rimac, quando escrevia uma série de artigos ligados àquele importante evento eclesial. Enquanto conversávamos, Gutiérrez tentava desembaraçar um longo fio de telefone – mais parecia uma bola de lã na boca de um gato brincalhão. Ele sempre tinha que manter as mãos ocupadas ao se sentir nervoso, seja torcendo um elástico ou brincando com uma caneta esferográfica. E naquele momento tinha razões mais que suficientes para estar tenso, pois o cardeal Ratzinger anunciara, para breve, resposta à defesa que Leonardo Boff havia feito de seu livro Igreja, Carisma e Poder contra as críticas de Roma. O Natal tinha passado e a Cúria ainda permanecia em silêncio. A segunda “Instrução” sobre a teologia da libertação, baseada numa consulta aos bispos da América Latina, prometida para novembro ou dezembro, também não tinha aparecido. Talvez tivesse sido decidido que o papa deveria fazer uma declaração mais oficial sobre a teologia da libertação no local. Nada poderia ser mais oportuno que um pronunciamento durante uma visita à terra natal do pai da teologia da libertação. Gustavo tinha medo de que o papa dissesse algo que pudesse ser interpretado como uma condenação de sua teologia. Seria desastroso. Apesar disso, estava pronto a deixar a “torre” que o protegia do assédio da imprensa e aparecer no encontro do papa com sacerdotes e leigos na praça. Mais uma vez parecia certo de que, devido às suas raízes indígenas, como pessoa capaz de caminhar através da floresta sem despertar a natureza de seu sono, sua presença seria discreta como a garoa que cobre os telhados de Lima antes do amanhecer.

Admiradores e inspiradores

A caminho de Cuba, os irmãos Leonardo e Clodovis Boff e eu passamos por Lima, no fim da tarde de 4 de setembro de 1985. Encontramos Gustavo na paróquia operária onde, junto com o padre Jorge, diretor da Pastoral Operária de Lima, o teólogo exercia seu ministério sacerdotal. Insistimos que viesse conosco para Havana, porque Fidel Castro tinha demonstrado grande desejo de encontrá-lo. Gustavo foi evasivo, objetou que, naquele mesmo momento, um grupo de bispos peruanos, liderados pelo arcebispo Durán Enriquez, preparava um livro didático criticando seus escritos, o que significava que teria de se concentrar em produzir uma espécie de defesa antecipada. Algum tempo depois, Gutiérrez confirmou que não tinha ido a Cuba em atenção a um pedido do padre Carlos Manuel de Céspedes, então secretário geral da Conferência Episcopal Cubana, que fora seu colega em Roma. O sacerdote cubano tinha medo de que a presença do teólogo peruano em Cuba fosse explorada politicamente.

Na noite seguinte ao nosso encontro em Lima, Leonardo, Clodovis e eu nos encontramos com Fidel Castro em Havana. Entregamos a ele a carta que o teólogo lhe mandara. Ao terminar, comentou que acabara de ler Teologia da Libertação e se disse impressionado com sua base científica e seu impacto ético. Mencionou especialmente a honestidade com que Gutiérrez trata a questão da luta de classes e a dimensão da pobreza. E acrescentou, com ênfase: “Precisamos distribuir livros como este ao movimento comunista. Nosso povo não sabe nada sobre isso. Para vocês é mais difícil escrever um livro como este, do que para nós produzir um texto sobre marxismo.” Alguns dias depois, Fidel declarou, na presença de dom Pedro Casaldáliga, do Brasil, que “a teologia da libertação é mais importante que o marxismo para a revolução na América Latina”.

Mas quem pensa que a política falava mais alto no coração de Gutiérrez está enganado. Ele era acima de tudo um místico. Seus livros mais recentes, O Deus da Vida, Sobre Jó: Falar de Deus, O Sofrimento do Inocente e Beber denosso próprio poço, são fundamentalmente espirituais, visam alimentar a vida de fé e oração de cristãos comprometidos com a luta popular. Para Gutiérrez, a teologia era secundária. O essencial consiste em fazer a vontade de Deus na ação libertadora. E sua aguda visão teológica captava a presença do Senhor, solidário lá onde Ele parece estar mais ausente, no sofrimento dos pobres. Esse sofrimento permeava a vida do próprio Gustavo, pois sua saúde delicada exigia cuidados constantes. Mas ele não se queixava. Preferia gritar pelos pobres.

Certa ocasião, passei um dia inteiro com ele no Curso de Verão, em Lima, ao qual acorriam milhares de militantes de comunidades cristãs de base em busca de fundamentação teológica. Percebi que ele estava triste, embora tivesse apresentado seu curso com a habitual vivacidade. Havia uma sombra naquele rosto que se iluminava, feliz, quando rodeado de pessoas simples, pobres, dedicadas à utopia do Reino. Conversamos, e nem uma palavra de autopiedade saiu de seus lábios. Só mais tarde fiquei sabendo que sua mãe havia falecido naquele dia.

O livro sobre Jó é uma autobiografia disfarçada de Gustavo Gutiérrez. De suas páginas surge a profunda convicção de que toda a teologia da libertação deriva do esforço de dar sentido ao sofrimento humano. Na busca desse sentido, o teólogo sabe que, como diz Clodovis Boff, tudo é política, mas a política não é tudo. A solidariedade com o pobre não se esgota na causa da justiça; ela nos conduz à esfera da gratuidade, onde o despojamento espiritual abre o caminho para a comunhão com Deus. Assim como na América Latina a vida de fé não pode ser separada das exigências da política, também o projeto revolucionário deveria encontrar na mística cristã o modelo para a formação de novos homens e mulheres. Consequentemente, a teologia da libertação só pode ser acusada de desprezar a dimensão espiritual por alguém que não conheça a longa lista de obras que nasceram da contemplação e das mãos de teólogos e teólogas como Gutiérrez.

Os estigmas divinos queimavam as entranhas de Gustavo Gutiérrez. É impossível apreender a profundidade total de sua inspiração intelectual, seu papel profético e sua alma mística sem conhecer aqueles três peruanos que estão na raiz de sua genialidade: José Carlos Mariátegui, César Vallejo e, acima de tudo, José María Arguedas. Do comunista Mariátegui, autor do clássico Siete Ensayos Peruanos, Gutiérrez aprendeu a técnica de canibalismo cultural necessária para latino-americanizar toda a bagagem teórica de seus anos de estudos em Roma, Bélgica, França e Alemanha. Do poeta César Vallejo, autor de Trilce, poesia tão importante para a literatura moderna quanto Ulisses, herdou o lamento nostálgico da criatura sofredora diante do silêncio do Criador: “Meu Deus, se Você tivesse sido humano hoje, Você seria capaz de ser Deus” (Los dados eternos). “Nasci num dia em que Deus estava doente” (Espergesia).

No entanto, a influência maior foi a do novelista José María Arguedas, de quem Gutiérrez era amigo, e a quem rendeu tributo em muitas de suas palestras e escritos. É significativo que ele tenha escolhido, como epígrafe de sua obra Teologia da Libertação, uma página do livro Todas las Sangres deste autor quéchua, especificamente aquela em que o sacristão indígena de Lahuaymarca diz ao sacerdote: “Seu Deus não é o mesmo. Ele faz com que pessoas sofram sem consolo…”

“Será que Deus poderia estar no coração daqueles que dilaceraram o corpo do inocente Mestre Bellido? Será que Deus poderia estar no corpo dos engenheiros que estão matando La Esmeralda? No coração das autoridades que tiraram de seus donos aquele campo de milho onde, em cada colheita, uma virgem costumava brincar com seu filhinho pequeno?”

Em novembro de 1981, encontrei Gustavo em Manágua. Lá, entre discussões teológicas com os dirigentes sandinistas, numa tentativa de ajudá-los a entender as diferentes posições dos cristãos quanto à revolução, nasceu aquilo que mais tarde se tornaria seu livro sobre Jó. Nele levanta a questão fundamental e pergunta a si mesmo: Como podemos falar sobre Deus no meio de tanta opressão? Se queremos fazer teo/logia, falar sobre Deus, disse ele, precisamos primeiro ficar em silêncio diante de Deus. Desse silêncio, que envolve os corações dos pobres, nasce a sabedoria.

No convento de Lima, Gustavo, meu confrade na Ordem Dominicana, transvivenciou em 22 de outubro de 2024. Com certeza repete com Jó: “Antes eu Te conhecia só por ouvir dizer; mas, agora, meus olhos Te veem.”

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.

Revolução das consciências

A Unesco aprovou, em 1976, o Informe MacBride, elaborado por Sean MacBride, Prêmio Nobel da Paz e Prêmio Lenin da Paz, sobre o direito de todos os povos participarem equitativamente dos meios de informação e comunicação. Marshall McLuhan e Gabriel García Márquez o aplaudiram; Ronald Reagan vaiou…

O Informe adverte sobre os perigos da monopolização midiática, o poder de alguns veículos de impor um modo de pensar, agir, consumir e divertir-se. Como alerta Fernando Buen Abad, tais veículos são verdadeiras usinas de políticos e governos.

“O velho mundo morre. O novo demora a nascer” (Gramsci). Hoje, as plataformas digitais são verdadeiras Hidra, o monstro de sete cabeças. E ainda não apareceu um Hércules que possa matá-la. Em minha opinião, as plataformas só deixarão de disseminar seu veneno no dia em que houver uma regulação internacional sob controle do poder público. Enquanto elas detiverem o monopólio privado de manipular informações, a democracia estará severamente ameaçada pelo surgimento de figuras histriônicas e perversas como Bolsonaro, Milei e Bukele, para ficar apenas em exemplos latino-americanos.

Os governos progressistas raciocinam, em geral, pela lógica do sistema. Centram suas pautas no desenvolvimentismo, como investimentos em infraestrutura, o que amplia os postos de trabalho e melhora as condições de vida da população. Priorizam também o combate à inflação, o aumento dos salários, e o acesso à alimentação, saúde e educação.

Tudo isso é positivo, mas não suficiente. É preciso algo mais: a revolução das consciências. Sem isso não se forma uma cultura democrática, de respeito aos direitos humanos, à diversidade, e de cuidado do meio ambiente.

A democracia precisa ser libertada de seus vícios conservadores e emancipada da apropriação burguesa. Não pode perdurar como mero jogo de aparências, refém, de fato, do capital financeiro, ou seja, da minoria rica e poderosa da sociedade. Faz-se imprescindível um trabalho educativo que forme consciência crítica e desperte a sensibilidade indignada frente à opressão, à discriminação e à violência.

A comunicação é, hoje, uma questão de saúde pública. Não se pode admitir que os interesses do mercado estejam acima dos direitos da coletividade. E não é com fraseologia de esquerda que vamos politizar o povo. É com método pedagógico e educação crítica. Eis a única forma eficiente de combater as armas de guerra ideológica do neoliberalismo.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

El silencio de los corderos

No me refiero aquí al célebre filme (1991) dirigido por Jonathan Demme y protagonizado por Jodie Foster y Anthony Hopkins. Me refiero a todos los que, dotados de conciencia crítica, no sabemos cómo actuar ante el vertiginoso ascenso de la política de derecha, el agravamiento de la destrucción ambiental (incendios en todo Brasil y desertificación en la Amazonia y el Cerrado), el genocidio del pueblo palestino por el gobierno de Israel, la connivencia de políticos electos por los votos de la izquierda con las fullerías de la derecha.

Movidos por un dogma político de carácter religioso –el determinismo histórico—, creímos que el futuro sería inexorablemente de la sociedad poscapitalista. La historia supuestamente estaba grávida de ese futuro, bastaría con que nosotros, los progresistas, hiciéramos el papel de parteros. Y, de repente, los hechos se abatieron sobre nuestras utopías: 70 años de socialismo en la Unión Soviética se evaporaron sin que se disparara un tiro; el Muro de Berlín precipitó el advenimiento del capitalismo en el este, que fue acogido como una buena nueva; los Estados Unidos, como la Roma de los césares, pasaron a detentar la hegemonía ideológica y económica mundial.

?Quién de la izquierda se dio cuenta de la gravedad de la cuestión climática? Fue necesario que Chico Mendes pagara con la vida, en 1988, su grito de alerta. Y no le prestamos oído cuando advirtió que “la ecología sin lucha de clases es jardinería”. Tan colonizados estamos que nuestra inercia demuestra que, en realidad, también creemos que la protección ambiental perjudica nuestros proyectos desarrollistas. ¿Como dejar de explotar las reservas de petróleo?

¿Como evitar la construcción de hidroeléctricas, aunque signifique contaminación de las aguas y devastación de las aldeas indígenas? ¿Cómo no satisfacer las demandas de financiamiento y exoneración deimpuestos del agronegocio, que garantiza la riqueza de nuestras exportaciones?

B Hoy me pregunto si aún existe la izquierda. Según Norberto Bobbio, son de izquierda quienes se indignan con la desigualdad social y se empeñan en erradicarla. En Europa son raros, y quien más se destaca como un hombre de izquierda, ni europeo es, porque nació en Argentina: el papa Francisco. Como Juan el Bautista, una voz que clama en el desierto…

¿Dónde estaba la izquierda cuando, después de la desaparición del socialismo en el este europeo, los Estados Unidos invadieron Irak, Kuwait, Somalia, Bosnia, Sudán, Afganistán, Yugoslavia, Yemen, Kazajstán, Libia y Siria? Y ahora la Casa Blanca sostiene las guerras de Ucrania y de Israel contra el pueblo palestino.

Vale recordar que sucesivos gobiernos norteamericanos han intervenido abiertamente en al menos 81 elecciones –y en algunas de forma encubierta– de otras naciones entre 1946 y 2000.

Hoy la derecha posee un arma poderosa: las redes digitales. Controla los big techs, moviliza sus algoritmos y robots. Y descubrió cómo manipular multitudes en función del mercado y de sus propuestas políticas. Basta leer Las redes del caos: cómo las redes sociales reprogramaron nuestra mente y nuestro mundo, de Max Fisher.

¿Cuál es el antídoto para ese inmenso poder que nos hace cambiar lo real por lo virtual? Todos los días perdemos horas colgados de nuestros celulares, viendo el mundo picoteado, realimentando nuestras burbujas, mirando por el ojo de las cerraduras electrónicas. Somos incapaces de levantarnos de la silla para participar en una reunión del movimiento social, una asamblea sindical, un evento partidista. Y dejamos que las calles las ocupe la derecha, porque hemos perdido la capacidad de movilización.

El fuego devora nuestros biomas, el aire contaminadoinvade nuestros pulmones, los políticos hacen promesas, y con nuestro silencio, la conmiseración nos hace pensar que somos inocentes corderos…

Frei Betto es autor, entre otros libros, de la novela sobre la Amazonia Tom vermelho do verde (Rocco).

Silêncio dos inocentes

Não me refiro aqui ao célebre filme (1991) dirigido por Jonathan Demme e estrelado por Jodie Foster e Anthony Hopkins. Refiro-me a todos nós que, dotados de consciência crítica, não sabemos como agir diante da vertiginosa ascensão política da direita, do agravamento da destruição ambiental (queimadas em todo o Brasil e desertificação da Amazônia e do Cerrado), do genocídio do povo palestino pelo governo de Israel, da conivência de políticos eleitos pelos votos da esquerda com as maracutaias da direita.

Movidos por um dogma político de caráter religioso – o determinismo histórico -, acreditamos que o futuro seria inexoravelmente da sociedade pós-capitalista. A história estaria grávida desse futuro, bastaria a nós, progressistas, fazer o papel de parteiros. E, de repente, os fatos desabaram sobre as nossas utopias: 70 anos de socialismo na União Soviética evaporaram sem que se disparasse um único tiro; o Muro de Berlim desabou e o advento do capitalismo do lado leste foi acolhido como uma boa nova; os EUA, como a Roma dos Césares, passaram a ter hegemonia ideológica e econômica sobre o mundo e a China passou a cuidar do próprio umbigo com seu capitalismo de Estado.

Quem da esquerda se deu conta da gravidade da questão climática? Foi preciso Chico Mendes pagar com a vida, em 1988, seu grito de alerta. E não demos ouvidos quando ele ressaltou que “ecologia sem luta de classes é jardinagem”. Tão colonizados estamos que a nossa inércia comprova que, de fato, também achamos que proteção ambiental prejudica nossos projetos desenvolvimentistas. Como deixar de explorar as reservas de petróleo? Como evitar a construção de hidrelétricas, ainda que isso signifique poluição das águas e devastação das aldeias indígenas? Como não atender as demandas de financiamento e desoneração do agronegócio, que garante a riqueza de nossas exportações?

Hoje me pergunto se ainda existe esquerda. Segundo Norberto Bobbio, são de esquerda todos que se indignam com a desigualdade social e se empenham em erradicá-la. Na Europa, há raros e quem mais se destaca como homem de esquerda, nem europeu é, nasceu na Argentina: o papa Francisco. Como João Batista, voz que clama no deserto…

Onde estava a esquerda quando, após o desaparecimento do socialismo no leste europeu, os EUA invadiram Iraque, Kuwait, Somália, Bósnia, Sudão, Afeganistão, Iugoslávia, Iêmen, Cazaquistão, Líbia e Síria? E agora a Casa Branca sustenta as guerras da Ucrânia e de Israel contra o povo palestino.

Vale lembrar que sucessivos governos norte-americanos intervieram em pelo menos 81 eleições de outras nações, no período de 1946 a 2000, algumas de forma velada, outras conhecidas.

Hoje a direita possui uma poderosa arma: as redes digitais. Controla as big techs, movimenta seus algoritmos e robôs. E descobriu como manipular multidões em função do mercado e de suas propostas políticas. Basta ler “A máquina do caos – como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo”, de Max Fisher (Todavia).

Qual o antídoto para esse imenso poder de nos fazer trocar o real pelo virtual? A cada dia perdemos horas dependurados em nossos celulares, encarando o mundo picotado, realimentando as nossas bolhas, olhando pelas fechaduras eletrônicas. Somos incapazes de nos levantar da cadeira para participar de reunião do movimento social, de assembleia sindical, de evento partidário. E deixamos as ruas para serem ocupadas pela direita, já que perdemos a capacidade de mobilização.

O fogo devora nossos biomas, o ar contaminado invade nossos pulmões, os políticos fazem promessas, e sob o nosso silêncio a comiseração nos faz pensar que somos inocentes…

Frei Betto é escritor, autor do romance sobre a Amazônia “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Desafios dos Partidos Progressistas

Tive a honra de ser convidado a abrir, em 26 de setembro último, na Cidade do México, o XXVI Seminário Internacional “Os partidos e uma nova sociedade”, promovido pelo Partido do Trabalho que, em aliança com os partidos Morena e Verde, elegeram a primeira mulher presidente do México: Claudia Sheinbaum.

Na presença de delegações de partidos progressistas de cinco continentes, iniciei por ressaltar os sete obstáculos à governabilidade:

1) Dificuldades econômicas devido à dependência externa, o que impossibilita implementar políticas de distribuição de renda e combate à pobreza. Em geral, os países em desenvolvimento dependem, historicamente, da exportação de commodities e da exploração de seus recursos naturais. A volatilidade dos preços no mercado internacional e a pressão das instituições financeiras hegemônicas, como o FMI, impedem os governos de manterem, a longo prazo, programas sociais sustentáveis.

2) Governança e corrupção. Em muitos países as forças progressistas se sentem obrigadas, para garantir a governabilidade, a negociar com as forças conservadoras. E as estruturas de governo são contaminadas pela corrupção, o que faz refluir o apoio popular.

3) Avanço da direita. Os setores de direita, respaldados pelas Big Techs e as redes digitais (robôs, algoritmos, Inteligência Artificial), se apropriam da agenda de costumes, tão sensível à população, e manipulam o sentimento religioso. Adotam uma retórica nacionalista, xenófoba, anti-imigração e favorável ao neoliberalismo.

4) Falta unidade das tendências de esquerda de cada país e, portanto, de estratégias comuns.

5) A pressão imperialista, como os bloqueios a Cuba e Venezuela, asfixia a economia dos países progressistas, afetando as condições de vida da população.

6) Falta uma correta gestão da crise climática e dos recursos naturais. Há tensão entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental. A exploração de recursos naturais (minério, petróleo, agronegócio etc.), em geral feita pelo capital privado, desencadeia conflitos com os movimentos indígenas e ambientalistas.

7) São insuficientes os mecanismos para combater a desigualdade social e o racismo estrutural. E as populações indígenas e negras são precariamente incluídas nas esferas de poder.

Ressaltei que ser de esquerda é, sobretudo, uma opção ética, o que exige de seus militantes coerência de ação com os princípios abraçados. Fidel me disse um dia que um revolucionário pode perder tudo: a família e o emprego, porque caiu na clandestinidade; a liberdade, porque foi preso; a vida, porque o assassinaram. Só não pode perder a moral, pois isso compromete, aos olhos do povo, a causa que defende.

Na América Latina, os governos progressistas criaram ferramentas importantes de integração entre os países, como ALBA, CELAC, UNASUR, Fórum Mundial Social e Fórum de São Paulo, todas sem a presença dos EUA. No entanto, nem sempre essas instâncias são devidamente valorizadas.

Muitas lideranças de esquerda se deixam picar pela “mosca azul”, e insistem em se perpetuar no poder, causando ruptura entre os setores progressistas e desgaste popular. E muitos militantes são incorporados às estruturas de governo sem a responsabilidade de dar prosseguimento ao trabalho de base. Em muitos países a capacidade de mobilização popular promovida pela direita supera a da esquerda.

Os fatos comprovam que políticas sociais não são suficientes para mudar a cabeça do povo. Para isso se requer um intenso e sistemático trabalho de educação política, já que toda a população sofre uma deseducação política profunda, capilar, seja pela cultura que se respira, seja pela família, escola, religião e, sobretudo, redes digitais.

É preciso menos palavras de ordem e mais Paulo Freire. Sem valorizar a educação popular, a economia solidária, o cooperativismo, a cultura e a arte populares e os movimentos identitários e ambientalistas, dificilmente surgirá uma nova geração de militantes capaz de formular e lutar por uma sociedade pós-capitalista.

Enfim, precisamos ressignificar o socialismo. E guardar o pessimismo para dias melhores.

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.