Fidel, líder exemplar

Em 25 de novembro comemoram-se cinco – oito anos da transvivenciação de Fidel. Não saberia dizer quantas conversas privadas tive com ele, desde que o conheci, em 1980. Após o nosso primeiro encontro, em Manágua, fiz inúmeras viagens a Cuba, e acredito que, a partir de 1985, em quase todas elas surgiu a oportunidade de encontrá-lo.

Mas nunca tive acesso direto a ele. Enganavam-se aqueles que me ligavam e pediam que eu fosse portador de uma carta ou de um apelo a Fidel. Não era alguém que eu pudesse chamar por telefone, embora ele tenha me ligado algumas vezes. Uma delas foi em 2010, pouco antes da eleição presidencial que daria vitória a Dilma Rousseff. Eu me encontrava em São Paulo, no Esch Café, em companhia – por coincidência – do embaixador de Cuba no Brasil e do cônsul em São Paulo. Fidel queria saber sobre as chances de Dilma, do PT e sucessora de Lula, ser eleita presidente da República. Os dois diplomatas, surpresos, devem ter imaginado que tais chamadas a mim fossem frequentes…

Desconfio que, como eu, ele detestava falar ao telefone. Nas poucas vezes que o vi ao aparelho – uma, em seu gabinete, para cumprimentar o amigo Carlos Rafael Rodríguez, que fazia aniversário, e outra, certa noite em Havana, na casa do embaixador do Brasil, Ítalo Zappa, para cancelar um compromisso – foi tão sucinto que parecia o avesso daquele homem que, de uma tribuna, era capaz de entreter a multidão por horas seguidas.

Em 19 de fevereiro de 2016, eu me encontrava em Havana, no meu último dia na cidade naquela ocasião, já de malas prontas para embarcar à tarde de volta ao Brasil. Fui pela manhã à Casa das Américas – a mais importante instituição cultural da América Latina -, assistir ao filme “Batismo de sangue”, baseado em meu livro homônimo, e havia marcado almoço com Homero Acosta e, em seguida, tomar o rumo do aeroporto.

Para minha surpresa, Homero chegou bem antes do previsto e me retirou do salão no qual o filme era exibido. Dalia Soto del Valle, esposa de Fidel, havia ligado para ele dizendo que o Comandante tinha interesse em falar comigo pelo telefone. Por razões de segurança, a chamada não poderia ser por celular. Tínhamos que retornar ao hotel e, de lá, ligar do telefone fixo do apartamento em que me hospedei.

Ocorre que eu já tinha fechado a conta no Meliá Habana. Ainda assim, Homero insistiu em retornarmos ao hotel. Por sorte, o apartamento permanecia vazio. Homero fez a ligação e me passou o aparelho. Dalia me disse que, lamentavelmente, “el Jefe” não pudera me encontrar naqueles dias, mas antes que eu partisse queria ao menos me saudar por telefone. Fidel, sempre atencioso comigo, indagou se eu tinha mesmo que retornar ao Brasil naquela tarde, se não poderia ficar mais uns dias. Expliquei-lhe as dificuldades.

─ Mas, pelo menos, pode vir aqui para tomar um café? – convidou-me.

Respondi positivamente. Ao entrar no carro de Homero, nem ele nem Roberto, o motorista, sabiam onde ficava a casa de Fidel. Um segredo guardado a mil chaves por razões de segurança. No entanto, eu estivera lá várias vezes e conhecia bem o trajeto. De modo que se criou uma situação inusitada: um frade brasileiro indicando a um alto funcionário do Palácio da Revolução e a seu motorista o caminho da residência do Comandante. Aliás, foi a primeira vez que Homero esteve pessoalmente com Fidel, o que se repetiu em minhas visitas posteriores a Cuba, inclusive no dia em que ele completava 90 anos.

O que primeiro chamava a atenção quando se deparava com Fidel era a sua imponência. Parecia maior do que era, e a farda lhe revestia de um simbolismo que transmitia autoridade e decisão. Quando ingressava em um recinto era como se todo o espaço fosse ocupado por sua aura. Os que estavam em volta se calavam atentos a seus gestos e palavras. Os primeiros instantes costumavam ser constrangedores, pois ficavam todos esperando que ele tomasse a iniciativa, escolhesse o tema, fizesse uma proposta ou lançasse uma ideia, enquanto ele persistia na ilusão de que a sua presença era uma a mais na sala e que lhe dariam o mesmo tratamento amigável, sem cerimônias e reverências. Como na canção de Cole Porter, ele devia se perguntar se não seria mais feliz sendo um simples homem do campo, sem a fama que o revestia.

Diz a lenda que, altas madrugadas, costumava dirigir seu jipe pelas ruas de Havana, incógnito. Sei que tinha o hábito de aparecer inesperadamente na casa dos amigos, desde que visse uma luz acesa, e embora alegasse que permaneceria apenas cinco minutos, não seria surpresa se ficasse até que os primeiros raios de luz prenunciassem a aurora.

Outro detalhe que surpreendia em Fidel era o timbre de voz. O tom em falsete contrastava com a corpulência. Às vezes soava tão baixo que seus interlocutores apuravam os ouvidos como quem recolhe segredos e revelações inéditas. E, quando falava, não gostava de ser interrompido. Magnânimo, passava da conjuntura internacional à receita de espaguete, da safra de açúcar às recordações de juventude.

Porém, não se deve julgá-lo um monopolizador da palavra. Jamais conheci alguém que gostasse tanto de conversar como ele. Por isso não concedia audiências. Repugnavam-lhe os encontros protocolares, nos quais as mentiras diplomáticas ressoam com a classe de verdades definitivas. Fidel não sabia receber uma pessoa por 10 ou 20 minutos. Quando a encontrava, ficava com ela ao menos uma hora. Com frequência, a noite toda, até se dar conta de que era hora de ir para casa, tomar um banho de piscina, comer algo e dormir.

Na conversa pessoal, o líder cubano procurava extrair o máximo de seu interlocutor. Quando se entusiasmava com um tema, queria conhecer todos os seus aspectos. Indagava a respeito de tudo, o clima de uma cidade, o corte de uma roupa, o tipo de couro de uma pasta ou sobre aviões militares de um país. Se o parceiro não dominava os detalhes do tema suscitado, o melhor era mudar de assunto.

Ainda que iniciasse o diálogo confortavelmente sentado, logo tinha-se a impressão de que qualquer poltrona era demasiadamente estreita para o seu corpanzil. Eletrizado pela excitação de suas próprias ideias, Fidel se levantava, andava de um lado a outro, parava no meio da sala, os pés juntos, o tronco arqueado para trás, a cabeça tombada sobre a nuca e o dedo em riste; bebericava uma dose cowboy de uísque, provava um canapé, curvava-se sobre o interlocutor, tocava-lhe o ombro com as pontas dos dedos indicador e médio; sussurrava-lhe ao ouvido, apontava incisivo o indicador direito, gesticulava veemente, erguia o rosto emoldurado pela barba e abria a boca, exibindo os dentes curtos e pálidos, como se o impacto de uma ideia lhe exigisse reabastecer os pulmões; fitava o interlocutor com seus olhos miúdos e brilhantes, como quem quer absorver cada informação transmitida.

Era preciso muita agilidade para acompanhar seu raciocínio. Sua prodigiosa memória se enriquecia por uma invejável capacidade de fazer complicadas operações matemáticas mentais, como se acionasse um computador no cérebro. Gostava que lhe contassem casos e histórias, descrevessem processos produtivos, traçassem o perfil de políticos estrangeiros. Mas não admitia que invadissem sua privacidade, guardada a sete chaves. A menos que o interesse estivesse relacionado à sua única paixão: a Revolução Cubana.

Sempre cercado por atentos seguranças, Fidel sabia que não era alvo apenas das atenções de admiradores. Durante doze anos, entre 1960 e 1972, mafiosos como Johnny Roselli e Sam Giancana, interessados em recuperar os cassinos expropriados pela Revolução, tentaram assassiná-lo em colaboração com a CIA.

Apesar de tudo, sobreviveu. E faleceu aos 90 anos, serenamente, na cama, cercado de seus familiares.

Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a religião” (Companhia das Letras), entre outros livros.

La Revolución de las Conciencias

La UNESCO aprobó en 1976 el informe MacBride, elaborado por Sean MacBride, Premio Nobel de la Paz y Premio Lenin de la Paz, sobre el derecho de todos los pueblos a participar equitativamente de los medios de información y comunicación. Marshall McLuhan y Gabriel García Márquez lo aplaudieron. Ronald Reagan lo desaprobó…

El informe advierte sobre los peligros de la monopolización mediática: el poder de algunos vehículos de imponer un modo de pensar, actuar, consumir y divertirse. Como alerta Fernando Buen Abad, esos vehículos son verdaderas fábricas de políticos y gobiernos.

“El viejo mundo muere. El nuevo demora en nacer” (Gramsci). Hoy, las plataformas digitales son verdaderas Hidras, monstruos de siete cabezas. Y todavía no ha aparecido un Hércules que pueda matarlas. En mi opinión, esas plataformas solo dejarán de diseminar su veneno el día en que exista una regulación internacional bajo el control del poder público. Mientras detenten el monopolio privado de la manipulación de informaciones, la democracia estará severamente amenazada con el surgimiento de personajes histriónicos y perversos como Bolsonaro, Miley y Bukele, para solo mencionar ejemplos latinoamericanos.

Los gobiernos progresistas razonan, por lo general, según la lógica del sistema. Centran sus pautas en el desarrollismo, como inversiones en infraestructura, lo que aumenta los puestos de trabajo y mejora las condiciones de vida de la población. Priorizan también el combate a la inflación, el incremento de los salarios y el acceso a la alimentación, la salud y la educación.

Todo eso es positivo, pero no suficiente. Se necesita algo más: la revolución de las conciencias. Sin ella no se crea una cultura democrática de respeto a los derechos humanos y a la diversidad, y de cuidado con el medioambiente.

La democracia debe ser liberada de sus vicios conservadores y emancipada de la apropiación burguesa. No puede continuar como un mero juego de apariencias, rehén, de hecho, del capital financiero, o sea, de la minoría rica y poderosa de la sociedad. Se hace imprescindible un trabajo educativo que forme conciencia crítica y despierte la sensibilidad indignada frente a la opresión, la discriminación y la violencia.

La comunicación es hoy una cuestión de salud pública. No se puede admitir que los intereses del mercado estén por encima de los derechos de la colectividad. Y no es con una fraseología de izquierda que vamos a politizar al pueblo. Es con un método pedagógico y una educación crítica. Esa es la única forma eficiente de combatir las armas de la guerra ideológica del neoliberalismo.

Frei Betto es autor, entre otros libros, de Por uma educaҫão crítica e participativa (Rocco).

Deu é negro

(Em homenagem ao Dia da Consciência Negra, 20 de novembro)

Trago África no sangue. O reboar de tambores, a ponta afiada de lanças, os riscos coloridos realçando a pele e, na boca, o gosto atávico dos frutos do Jardim do Éden. Na alma, cicatrizes abertas de tantos açoites, o grito imperial dos caçadores de gente, filhos apartados de seus pais e, maridos, de suas mulheres, o balanço agônico da travessia do Atlântico e, nos porões, a morte ceifando corpos engolidos pelo mar e triturados pelos dentes afiados dos peixes.

Sou filho de Ogum e Oxalá, devoto de Iemanjá, a quem elevo oferendas de todas as dores e cores, lágrimas e sabores, o choro inconsolável das senzalas, a carne lanhada de cordas, pulsos e tornozelos a ferros, a solidão da raça, o ventre rasgado e engravidado pela feroz pulsão dos senhores da Casa Grande.

Restam-me, na cuia de madeira, sobras do suíno descarnado e, enquanto a mesa colonial saboreia o lombo, rasgo peles e orelhas, refogo em banha o feijão, fatio em paio as carnes, frito linguiças e torresmos, apimento e condimento, e me empanturro. No alambique, colho a seiva ardente da cana que me transporta aos ancestrais, às savanas e florestas, ao tempo de imensurável liberdade.

Nas noites de Casa Grande vazia e capatazes bêbados, enfeito o meu corpo de tinturas e, espelhado no reflexo da Lua, adorno braços e pernas, cubro-me de colares e braçadeiras e, ao som inebriante do batuque, danço, danço, danço, e exorcizo tristezas, esconjuro maus espíritos, imprimo ao movimento de todos os membros o impulso irrefreável do voo do espírito.

Sou escravo e, no entanto, senhor de mim mesmo. Não há ferrolho que me tranque a consciência nem moralismo que me faça encarar o corpo com olhos da vergonha. Faço do sexo festa; do carinho, liturgia; do amor, bonança; e multiplico a raça na esperança de quem fertiliza sementes. Dou ao senhor novos braços que haverão de derrubá-lo de seu trono.

Comungo a exuberância da natureza, faço das copas das árvores meus templos, e do fogão de lenha trago ofertas. Em meu ser trafegam, céleres, cavalos alados, e sigo o mapa traçado pelos búzios que me ensinam: não há dor que sempre dura, mas o verdadeiro amor perdura. Tão povoado é o céu de minhas crenças que não rejeito nem mesmo a santeria do clero. Antes, reverencio o cavalo de São Jorge, transfiro aos altares a devoção aos meus orixás, lanço ao rio a Virgem negra na fé de que, entre tantas brancas, incensadas no andor do senhor de escravos, chegará o tempo em que a minha será Aparecida e, a seus pés, também os joelhos dos brancos haverão de se dobrar.

Sou liberto e, no fundo das matas, recrio um espaço de liberdade e defendendo, com espírito guerreiro, meu reduto de paz. No quilombo, volto à África, resgato a força mistérica de meu idioma, celebro reisados e congadas, e o canto livre ecoa no coro da passarada. As águas da cachoeira expurgam-me de todo temor, pois sou protegido por árvores sentinelas cobertas de mil olhos vigilantes.

Cidadão brasileiro, ainda luto por alforria, empenhado em abolir preconceitos e discriminações, grilhões forjados na inconsciência e inconsistência dos que insistem em fazer da diferença divergência, e ignoram que Deus é negro.

Frei Betto é escritor, autor de “Minas do ouro” (Rocco), romance que retrata a escravidão em Minas Gerais, entre outros livros.

Utopia na veia

A primeira vez que me deparei com o conceito de utopia foi ao estudar Durkheim no curso de antropologia da USP, na década de 1960, embora tivesse lido, sem muito proveito, confesso, a “Utopia” de Thomas Morus, do século XVI.

Depois, com Marx e Engels, esta palavra se ampliou em meu horizonte político. E encontrei em Eduardo Galeano a melhor definição: “A utopia está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se distancia dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte se distancia dez passos. Por mais que caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para que eu não deixe de caminhar” (“Las palabras andantes”, 1994).

Em encontro com jovens, muitas vezes me perguntam se, quando eu tinha a idade deles, havia muitos viciados em drogas. Respondo que havia poucos. Não lembro de nenhum amigo, e eram muitos, das turmas de bairros que eu frequentava – ServBem e Mexe-Mexe -, em Belo Horizonte, que usassem drogas, exceto cheirar lança-perfume em época de carnaval. Éramos viciados em utopia.

Minha geração 1968 inventou a contracultura, quebrou paradigmas, promoveu a revolução sexual. É a geração de maio de 1968 na França, dos Beatles, do movimento hippie, de Jimi Hendrix e Janis Joplin.

Então, a Primavera de Praga, o assassinato de Che Guevara na Bolívia, o sectarismo da Revolução Cultural na China, a corrida nuclear entre as grandes potências, a proliferação de ditaduras militares na América Latina, trouxeram o desencanto com a política. A utopia se apagou do horizonte de muitos que acreditavam no avanço inevitável da história. “Já que o mundo não pode ser melhor, ao menos quero me sentir melhor e me alienar das tribulações circundantes”, disseram aqueles que recorreram à maconha, à cocaína, ao LSD.

Hoje, estou convencido de que quanto mais utopia, menos drogas; quanto menos utopias, mais drogas. Quem não “viaja” nos sonhos, tende a “viajar” na química…

A queda do Muro de Berlim (1989) fez ecoar o brado neoliberal de Fukuyama: “A história acabou.” Agora está decretada a perenidade do capitalismo. Haverá inovações tecnológicas e avanços científicos. Mas não mudanças no modelo de sociedade. Este será – para todo o sempre – o da acumulação privada da riqueza e da predominância do capital sobre os direitos humanos. As guerras que o digam.

Após o desaparecimento do socialismo no Leste europeu não há mais lugar para a social-democracia, que consistia em uma concessão feita pelo sistema capitalista, disposto a ceder os anéis para não perder os dedos. Ao garantir mais direitos à classe trabalhadora, a social-democracia criou um antídoto à ameaça comunista.

Desabado o Muro de Berlim, acabaram as concessões. Findou a social-democracia. O sistema arrancou a sua máscara de bom-mocismo e mostrou a sua verdadeira face, simbolizada na submissão dos países europeus à Otan e aos ditames da política exterior da Casa Branca, como demonstram os conflitos entre russos e ucranianos e israelenses e palestinos.

Hoje, a ameaça comunista só existe na retórica neofascista da política antipolítica. Agora, a especulação financeira, ao sobrepujar a produção, agrava o crescente processo de exclusão e amplia mundialmente o pobretariado. As novas tecnologias digitais dispensam mão de obra e precarizam as condições de trabalho, exacerbam a xenofobia e fortalecem muros que consolidam o “apartheid”, aprofundando as desigualdades e provocando hordas de migrações nos continentes mais pobres.

O “apartheid” é gritante em todos os recantos do globo: humanos que vivem como deuses; humanos que vivem como formigas, condenados à labuta diária pela sobrevivência; e humanos em condições tão vis que fazem os demais se perguntarem se eles são realmente humanos ou uma espécie intermediária na escala animal, entre os dotados de razão e os que são movidos a meros atavismos.

Esses supostos inumanos são desprovidos de direitos e encarados como altamente ameaçadores para aqueles que têm algum poder aquisitivo. Essa horda deve ser contida e, se possível, eliminada por guerras, fome, inacessibilidade à saúde e educação. Para tanto, urge ampliar as forças policiais, militarizá-las, multiplicar cárceres e tumbas devido ao aumento da letalidade em “nome da lei e da ordem”.

Nesse mundo de tanta distopia não é de  admirar que haja tanto êxito do narcotráfico, do comércio de armas, do fomento do ódio, e tanto descrédito em relação à ética, à ONU, aos tratados de paz e aos acordos diplomáticos.

Não encontro outro antídoto à barbárie senão o vício em utopia movido por aquilo que Paulo Freire denominava esperançar. E Geraldo Vandré bem define em sua música: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

Frei Betto é escritor, autor do romance sobre a Amazônia “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Vitória de Trump e o futuro da Esquerda

Como outrora se dizia à luz de categorias marxistas, a correlação de forças mudou. Após a Segunda Grande Guerra, o avanço da União Soviética e o êxito da Revolução Chinesa (1948) estabeleceram um equilíbrio pendular no mundo conhecido como Guerra Fria.

Os países capitalistas metropolitanos, em especial da Europa Ocidental, adotaram políticas social-democratas que beneficiaram a classe trabalhadora. O objetivo do Estado de bem-estar social era evitar que fosse atraída pela agenda comunista. A elite entregou os anéis para não perder os dedos.

Antonio Candido dizia que a maior conquista do socialismo não tinha ocorrido nos países que o adotaram, e sim na Europa Ocidental que, por temê-lo, concedeu direitos aos trabalhadores. Derrubado o Muro de Berlim (1989), os direitos também vieram abaixo.

Como Hitler e Mussolini encarnavam o que se considerava direita, se assumir como tal era tido como politicamente incorreto. No Brasil, após a redemocratização (1985), na polarização partidária o PT representava a esquerda e o PSDB, a direita, embora este partido traga em sua sigla a marca de social-democracia.

Dissolvida a União Soviética (sem que se disparasse um único tiro) e derrubado o Muro de Berlim, a direita decidiu “sair do armário”. Hoje, a polarização ideológica não é entre esquerda e direita, é entre direita e extrema-direita, como Kamala e Trump. Em nosso país, diante do avanço da extrema-direita, boa parte da direita tenta se disfarçar de “centro”. É o caso do PDT, do MDB e de outros, que não advogam uma sociedade pós-capitalista.

A eleição de Trump é a cereja do bolo que faltava à ascensão da direita no mundo. Sem dúvida, ela haverá de anabolizar a extrema-direita no Brasil. A diferença entre direita e extrema-direita é que a primeira respeita as regras da democracia burguesa; a segunda, as ignora e adota medidas autocráticas. O tema tem sido exaustivamente tratado por autores como Roger Eatwell, Matthew Goodwin e Cas Mudde.

Como ficam os partidos progressistas como PT, PSOL, PcdoB, UP e outros? Pelo andar da carruagem (eleição de Trump e resultados das eleições municipais) dificilmente haverão de amealhar um número significativo de votos nas eleições de 2026.

O próximo Congresso, a ser eleito em 2026, será tão ou mais conservador que o atual. Quem garante isso? O orçamento secreto, agora apelido de emendas parlamentares. Nenhum cacique municipal ou estadual correrá o risco de perder a boquinha na próxima legislatura federal. Quem vai querer abrir mão dessa cornucópia da qual jorram, a cada ano, bilhões de reais a serem embolsados por 81 senadores e 513 deputados federais?

Quais as alternativas para a esquerda e os partidos progressistas? Um dos desafios é lidar política e profissionalmente com as redes digitais. Não se pode depender de iniciativas pessoais ou grupais. Se um partido quer emitir mensagens (análises de conjuntura; dados do governo progressista; contrapontos às fake news da direita etc.), deverá contar com equipes de profissionais especializados em mídias digitais e politicamente identificados com as propostas de esquerda. Não repetir o erro de certas campanhas eleitorais de candidatos de esquerda, cujos marqueteiros são de direita… Há que se ter equipes que se revezem de 8 em 8 horas de modo a atuar 24h por dia, de domingo a domingo. E cujos conteúdos emitidos tenham linguagem popular e sejam de forte impacto visual.

O que levou Lula três vezes à presidência da República? Não foi a perícia dos marqueteiros nem as alianças partidárias, e sim o trabalho de base, de educação política, que acumulou em torno dele vultoso capital eleitoral. Trabalho desenvolvido em todo o Brasil a partir da década de 1970, através das comunidades de base das Igrejas cristãs, dos movimentos populares, do sindicalismo combativo, da militância remanescente da luta contra a ditadura. Trabalho conduzido pela pedagogia de Paulo Freire.

Por que agora as classes populares dos EUA votaram em Trump? Por que há “pobres de direita”? Por que só a direita consegue promover, hoje no Brasil, manifestações de rua com número significativo de pessoas?

Tomemos o exemplo de dona Maria. Diarista, sentia-se excluída, oprimida, condenada à invisibilidade. Ansiava, como é natural, sair do círculo do inferno. Sonhava em ser socialmente reconhecida e respeitada, como todo ser humano. Não lhe bastava ter um nome, documentos de identidade e uma atividade para sustentar, mal, a sobrevivência dela e dos filhos. Desejava “algo mais” que lhe imprimisse identidade social, sejam bens materiais (moradia, escola para os filhos, renda maior), sejam bens simbólicos (cultura, qualificação profissional, aprimoramento de seus dons artísticos).

Maria se sentia humilhada pela árdua jornada diária. Abandonada pelo marido, buscava conciliar seu trabalho de faxina com o cuidado dos filhos. Além de trabalhar muito, passava horas do dia no transporte coletivo e se sabia socialmente invisível. O filho adolescente queria ao menos um tênis de marca para ser socialmente reconhecido. Os sonhos de consumo podiam torná-lo vulnerável aos tentáculos da criminalidade.

Tudo mudou no dia em que Maria ingressou em uma comunidade religiosa que a trata como “irmã”, se interessa por sua vida, ajuda-a a transpor dificuldades. Para consolidar esse reconhecimento, ela abraçou a ideologia da comunidade. O pastor ou o padre a convenceu de que essa sociedade – capitalista – oferece oportunidades a todos, basta abandonar os vícios. Assim, deixou de gastar seu minguado salário em apostas e cigarros. Agora mira as famílias abastadas, em cujas casas faz faxina, como abençoadas por Deus, graças à prosperidade alcançada. Ainda que as pessoas continuem considerando-a uma “ninguém”, Maria aprendeu na Igreja que Deus a ama como filha e isso alimenta sua autoestima.

Mesmo que o governo dê a Maria moradia própria graças ao “Minha casa, minha vida” e uma renda adicional através do Bolsa Família; e mesmo que seus filhos tenham escolas e empregos, ela não dará o salto epistêmico da ideologia da direita para a esquerda.

Maria se inocula da naturalização do sistema capitalista por todos os meios que a cercam: a cultura que respira, as famílias que a contratam, a TV, o rádio, as redes digitais em seu celular. Como analisa o sociólogo estadunidense Seymour Martin Lipset em sua obra “Political man”, Maria admira pessoas ricas e poderosas, vota em políticos que prometem combater a politicagem, a corrupção, e tratar com mão de ferro bandidos e traficantes de drogas.

Maria só dará o salto epistêmico quando participar de uma comunidade que a convença de que Deus não criou o mundo para que a humanidade se dividisse em pobres e ricos, nem uma sociedade onde uns poucos esbanjam muito e muitos clamam por um prato de comida. Ou quando se integrar a um movimento popular que, além da organização para adquirir casa própria ou uma área no campo onde possa produzir, ofereça a ela uma educação política que a faça entender as causas das desigualdades sociais, da criminalidade, da dependência de drogas.

Na cabeça de Maria, homens como Trump e Bolsonaro merecem sua admiração porque são duros com a bandidagem e, por isso, os “frouxos” tratam de acusá-los injustamente de toda sorte de mentiras. Maria não sonha em ter a vida das madames para as quais trabalha. Sonha em andar pelas ruas sem medo de lhe roubarem a bolsa ou o celular; em ver os filhos empregados; em ter seu bairro com saneamento e ruas asfaltadas. Jamais imaginou que se na sociedade houvesse menos ricos, haveria também menos pobres. Ela nunca teve oportunidade de receber educação política. Por isso, vota confiante na direita, como nos EUA eleitores votaram majoritariamente em Trump, convencidos de que ele fará a roda da história girar ao contrário e o sonho americano se fará realidade para todos.

Se a esquerda brasileira não tirar Paulo Freire das prateleiras, reabrir equipes e escolas de educação popular, capacitar militantes para atuar junto às classes populares, assumir a ética como princípio inegociável, trocar o projeto de poder pelo projeto de Brasil, ela haverá de sofrer, em 2026, sua pior derrota desde o fim da ditadura em 1985.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

O olho crítico de Evandro Teixeira

Assim como uso a palavra para manter viva a memória das atrocidades da ditadura militar (Cartas da prisão; Batismo de sangue; Diário de Fernando; O dia de Ângelo; e Tom vermelho do verde), Evandro Teixeira usou a câmera fotográfica.

Seu olho clínico capturou, com maestria, como a ditadura, que durou 21 anos (1964-1985), tratava os opositores, comprometidos com o resgate da democracia, à base de fuzis, cavalos, bombas de gás lacrimogêneo, prisões arbitrárias, torturas e assassinatos.

O talento extraordinário de Evandro Teixeira não se restringiu às expressivas fotos de ações repressivas, figuras sinistras que governavam a nação e manifestações populares contrárias ao arbítrio. Seu foco era o do artista que transmuta a cassetetada do policial em balé tétrico ou a passeata estudantil em versão moderna do coro que, no teatro grego, marcava a culminância da catarse.

A arte fotográfica de Evandro Teixeira constitui uma inestimável contribuição ao esforço para que os anos de chumbo jamais se apaguem da memória nacional e impeçam que, no futuro, se repita aquele passado de opressão, dor, morte e tirania.

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.

Da utopia à distopia

As recentes eleições no Brasil e no mundo comprovam o avanço das forças políticas de direita. Acuados, os raros governos progressistas fazem concessões que contrariam os princípios que regem os programas de seus partidos. Ou adotam posturas autocráticas. Chama a atenção o fato de muitos líderes de direita serem jovens apoiados por jovens.

Perplexa com a perda de espaços e de capacidade de promover mobilizações populares, a esquerda parece não se ter dado conta ainda do grave perigo que o avanço da direita representa para o futuro de humanidade. O clima me recorda Berlim no início da década de 1930, quando todos bailavam pelos cabarés da cidade e conviviam alegremente com aqueles homens uniformizados cujas braçadeiras exibiam a suástica!

Sou da geração de 1968 que promoveu a revolução sexual, se espelhou em Che Guevara, manifestou solidariedade à luta dos vietnamitas contra a invasão dos EUA, aplaudiu os barbudos de Sierra Maestra que libertaram Cuba da órbita da Casa Branca. Geração que se nutria de Sartre e Merleau-Ponty; Reich e Fanon; Marx e Althusser. Geração que enfrentava ditaduras militares, erguia barricadas em defesa da democracia, apoiava greves operárias. Após a redemocratização do Brasil, em 1985, minha geração governou o país por 18 anos!

“E agora, José?/ A festa acabou, / a luz apagou, / o povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora, José?”, indagam os versos de Carlos Drummond de Andrade. Quais as causas dessa virada do mundo à direita? Como é possível entender o descaso dos países metropolitanos com a crise climática e o apoio ao genocídio promovido pelo governo sionista de Israel sobre as populações de Gaza e do Líbano? E a ONU, condenada a mero papel decorativo?

Uma das razões dessa virada ideológica se deve ao desaparecimento de paradigmas na cultura ocidental. Ninguém vive sem referências que alimentem a esperança. Minha geração se nutria do marxismo e tinha como referências reais os países socialistas que, apesar dos pesares, representavam um avanço civilizatório comparado aos países capitalistas, em especial quanto à redução das desigualdades sociais.

Tudo isso desabou. Pressionada pelo bloqueio imposto pelos EUA, Cuba enfrenta grave crise econômica, e a China se sustenta no paradoxo de adotar uma política socialista e uma economia capitalista.

Sem paradigmas não se fomentam utopias. E sem utopias não há esperança. O horizonte socialista se apagou do cenário político da esquerda. Líderes de esquerda temem inclusive pronunciar a palavra ‘socialismo’, estigmatizada pela direita. Receiam queimar a boca. Sabem que socialismo soa como sinônimo de comunismo e não atrai votos.

Não se projeta mais uma alternativa pós-capitalista. Procura-se amenizar os desmandos do sistema, ampliar redes de benefícios sociais aos mais pobres sem, no entanto, combater as causas estruturais da desigualdade e do desequilíbrio ambiental. São raras as vozes de ressonância mundial, como a do papa Francisco, que ousam proclamar, ainda que em termos menos convencionais, que dentro do capitalismo a humanidade não tem salvação. Basta ler as encíclicas assinadas por ele.

Sem teorias que iluminem, sem países que sirvam de exemplo, a esquerda fica à deriva no turbulento curso do rio da história sem saber onde haverá de desaguar. Hoje, Hitler e Mussolini se sentiriam à vontade no cenário internacional. Seriam aplaudidos como guias e exaltados como Trump, mormente se abrissem mão do antissemitismo.

Como o eleitor dará apoio e votos à esquerda se não há quem lhe apresente um antídoto à avassaladora deseducação política promovida pelas poderosas ferramentas midiáticas controladas pela direita? O povo não pensa no global, pensa no local; não foca o social, foca o pessoal. Quer segurança no bairro onde mora, acesso à internet, escola, moradia e emprego; prosperar e se livrar da humilhação de uma existência empobrecida e subalterna.

“Gente é pra brilhar”, proclama Caetano. As redes presenciais, que organizavam amplos setores populares (CEBs, sindicatos, movimentos sociais, núcleos partidários etc.) se esgarçaram. Ao lutar pelo fim do imposto sindical, a esquerda fragilizou toda a estrutura da organização e da mobilização operárias.

Agora, as redes virtuais imperam, destituem seus dependentes de cidadania e neles incutem o consumismo, o narcisismo e o individualismo. A ideologia do empreendedorismo leva multidões a abraçarem o “cada um por si e Deus por ninguém”. Incutido na cabeça do povo o sistema culpabiliza o indivíduo por não ser capaz de sair da pobreza e obter renda própria.

Como enfrentar tamanho eclipse da utopia que mobilizava multidões de jovens e aqueles que confiavam nas pautas da esquerda? O que temos a apresentar de melhor além de promessas?

Hoje, é incomensurável o número de jovens asfixiados pelo niilismo. Ignoram a ética, são indiferentes à religião, desprezam a política, têm ideias tão desalinhadas quanto os fios de seus cabelos. Sonham apenas em ter um bom emprego e uma vida confortável – um lugar ao sol nesse sistema cada vez mais afunilado e excludente.

Essa conjuntura obriga as forças progressistas a pôr as barbas de molho e reavaliar sua atuação política, sua linguagem, seu programa e seus objetivos.

O mundo retrocede. Da utopia para a distopia. E isso até os cegos enxergam.

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.