Forças produtivas ou destrutivas?

Em 1974, Hans Magnus Enzensberger publicou o artigo “Crítica à ecologia política”, no qual questionava o paradigma marxista de que o desenvolvimento das forças produtivas erradicaria a miséria. Aliado a Marcuse, o intelectual alemão enfatizou que “as forças produtivas se revelam como forças destrutivas e ameaçam toda a base natural da vida humana.”

A crescente industrialização, a expansão do consumismo, a “sociedade da superabundância”, arruínam o equilíbrio ambiental, sacrificam os mais pobres e comprometem o futuro das próximas gerações. Eis o paradoxo: a riqueza gera pobreza, como adverte o papa Francisco na encíclica “Laudato Sí” (“Louvado sejas – sobre o cuidado da casa comum”).

O filósofo André Gorz, em “Ecologia, uma ética da libertação”, frisa que a ecologia só atinge o seu caráter político e ético quando se compreende que a devastação da Terra resulta de um modo de produção centrado na maximização do lucro e no uso de tecnologias e recursos, como os combustíveis fósseis, que violentam o equilíbrio biológico. 

Walter Benjamin, em “Teses sobre a filosofia da história”, contestou o conceito tecnocrático e positivista de história derivado do desenvolvimento das forças produtivas. Sonhou com um tipo de trabalho que, “longe de explorar a natureza, é capaz de trazer à luz suas criações adormecidas em seu ventre como promessa”.

Já em 1964, há 60 anos, Murray Bookchin escreveu: “Desde a Revolução Industrial a massa atmosférica total de dióxido de carbono aumentou 13% acima dos níveis anteriores, que eram mais estáveis. A partir de bases teóricas sólidas, esse crescente cobertor de dióxido de carbono, ao interceptar o calor irradiado da Terra para o espaço sideral, levará ao aumento das temperaturas atmosféricas, à circulação de ar mais violenta, a padrões mais destrutivos de tempestades e, por fim, ao derretimento das calotas polares (…), ao aumento do nível do mar e à inundação de vastos territórios.” Os gaúchos que o digam.

Marcuse, em 1972, descobriu a natureza como aliada dos que lutam contra as sociedades predatórias, como a capitalista. Em “Contrarrevolução e revolta”, ele afirma: “A descoberta de forças libertadoras da natureza e de seu papel vital na construção de uma sociedade livre se torna uma nova força de mudança social.”
Esse debate sobre ecologia política deu ensejo ao ecossocialismo, no qual se destaca a obra de Michael Lowy. Quanto mais as forças produtivas avançam sem parâmetros ecológicos, mais a sua única fonte de recursos – a natureza – é degradada. Destroem-se as condições de sustentabilidade da espécie humana. A ambição tecnoeconômica predomina sobre as condições de vida na Terra.

A racionalidade moderna comete ainda grave erro ao excluir do pensamento ecológico práticas tradicionais de indígenas e camponeses. A fim de dominar territórios dos países emergentes e subdesenvolvidos, impôs o pensamento tecnocrata e promoveu a colonização do conhecimento. Por isso, as lutas dos povos originários são políticas e epistemológicas, pois visam a descolonização do conhecimento para que se alcance a emancipação cultural e política e o surgimento de territórios sustentáveis de vida. É preciso descolonizar o saber. Isso significa promover o reconhecimento e a revalorização dos saberes tradicionais e outros denominados “sabedoria popular” ou “saber local”. 

Como acentuou Milton Santos, a visão eurocêntrica da cultura, imposta como valor universal, qualificou de retrógrada a cultura de povos originários, silenciou culturas ou saberes em sua razão instrumental. 

Na encíclica “Laudato Sí”, o papa Francisco ressalta que “os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres. Hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da Terra, como o clamor dos pobres.”

 “Todo o Universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de Deus.” 
“É evidente a incoerência de quem luta contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser humano de que não gosta.”

“Toda a abordagem ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos.”
Como dizia Chico Mendes, separar a questão ambiental da política não é ecologia, é jardinagem…

Frei Betto é escritor, autor de “Uala, o amor” (FTD), entre outros livros.

Anestesia das consciências

Uma observação de Voltaire (1694-1778) nos ajuda a entender por que tantas pessoas emitem ofensas nas redes digitais e, assim, revelam mais a respeito do próprio caráter do que do perfil de quem é desrespeitado. “Ninguém se envergonha do que faz em conjunto”, escreveu em “Deus e os homens”.

Isso explica a insanidade dos linchamentos virtuais e a violência gerada pelo preconceito, como bem demonstra o filme “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado em 2019.

Muitos de nós jamais ofenderíamos pessoalmente um interlocutor com injúrias e palavrões. No entanto, há quem seja capaz de replicar nas redes digitais ofensas a inúmeras pessoas, sem sequer se dar o trabalho de apurar se a informação procede.

Ao ser humano é dada a capacidade de discernimento, atributo que lhe permite o exercício da liberdade. Há, contudo, quem prefira abdicar desse direito de optar livremente. Prefere deixar que as decisões sejam tomadas pelo líder, guru ou mentor do grupo social com o qual a pessoa se identifica. Opta pela “servidão voluntária”, na expressão de La Boétie (1530-1563). É o que antropólogos chamam de “macho alfa”, tendência inata no ser humano de ser comandado por alguém que julga ter mais poder que ele. E todos que não comungam o credo do líder são considerados inimigos, hereges ou traidores, e devem ser varridos da face da Terra.

Essa submissão de si à vontade do outro ocorre em partidos políticos, empresas, associações e, sobretudo, em segmentos religiosos. No caso de Igrejas, a dominação ideológica é legitimada pela suposta vontade de Deus ecoada pela voz do pastor ou do padre. Assim, difunde-se uma perigosa teodiceia pela qual tudo se explica pela lógica divina, ainda que a humana não consiga digeri-la.

Se há uma catástrofe como a de Brumadinho, se estou desempregado, se perco um filho atingido por bala “perdida”, não devo protestar ou lamentar. Deus tinha algo em mente para permitir que tais desgraças acontecessem. Assim a teodiceia se transforma em panaceia.

É o recurso da apatia como anestesia da consciência. O exemplo paradigmático é o extermínio das vítimas do nazismo. A ordem genocida não saía da cabeça de um tresloucado, e sim de quem tinha plena (e tranquila) consciência do que fazia, como demonstrou Hannah Arendt. 

A ordem inicial se desdobrava em sequência. Um dirigia o caminhão até o alojamento dos presos; outro os encaminhava ao veículo; outro ordenava se despirem e distribuía toalhas e sabão; outro apertava o botão vermelho; e, por fim, um grupo retirava os corpos da câmara de gás sem se preocupar por que foram mortos. Processo confirmado pela descoberta, em 1980, dos relatos escritos pelo grego Marcel Nadjari e guardados no interior de uma garrafa térmica enterrada no solo de Auschwitz, onde ele, prisioneiro, fazia parte do Sonderkommando, a equipe que retirava os cadáveres das câmaras de gás (cf: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42193700).

Isso se repete hoje em instituições que controlam o mercado financeiro mundial, como o FMI e o Banco Mundial. Ao propor ajustes fiscais, austeridade, teto de gastos a países periféricos, seus oráculos não são movidos por um sentimento de maldade com povos que verão agravada a situação de pobreza. Seguem a lógica do sistema: esses países tomaram dinheiro emprestado de credores nacionais e internacionais e, agora, precisam honrar suas dívidas. Ainda que isso signifique aumento da mortalidade infantil e do desemprego. 

Eis a lógica do poder, que nem sempre leva em conta os direitos dos subalternos. Isso vale para os casos de feminicídio, nos quais o homem agride a mulher; dos neonazistas que odeiam negros e homossexuais; dos internautas que vociferaram porque a Justiça permitiu que Lula, prisioneiro, comparecesse ao sepultamento do neto. 

Agora as bolhas nas redes digitais funcionam como aldeias virtuais nas quais o usuário se abriga e se identifica com o líder. Ao abdicar de pensar, adquire uma identificação epistêmica que lhe imprime segurança emocional, como a criança de mãos dadas com o pai ao atravessar a rua. 

Passar da consciência ingênua à consciência crítica, como assinala Paulo Freire, é um desafio pedagógico de todos nós que ainda nos pautamos por utopias libertárias.

Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a religião” (Companhia das Letras), entre outros livros.

Desafios às Forças Progressistas em 2025

Meu primeiro impulso foi intitular este texto de “desafios à esquerda”. Logo me dei conta de que, hoje em dia, resta pouco do que considero esquerda – que se empenha na superação do sistema capitalista.

Adoto “forças progressistas” porque a expressão inclui antibolsonaristas, apoiadores do atual governo Lula, os que se empenham para manter e ampliar a democracia formal, malgrado seu paradoxo de socializar a esfera política (sufrágio universal) e privatizar a econômica, excluindo a maioria da população brasileira de condições dignas de existência (moradia, saúde, educação, cultura, oportunidades de trabalho, que resulta em redução significativa do desemprego etc.).

Abordo em seguida desafios que considero prioritários.

A comunicação do governo

Embora haja grandes feitos em apenas dois anos de governo Lula, após quatro de desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro, poucos sabem que, em 2023, a economia brasileira cresceu 2,9% (alcançou R$ 10,9 trilhões), e em 2024, 3,5%; a renda dos trabalhadores aumentou 12% e consequentemente também o consumo das famílias; o programa Bolsa Família passou a atender 21,1 milhões de famílias (1 milhão a mais que em 2022); recuperação do salário mínimo acima da inflação (embora o ajuste fiscal tenha limitado o crescimento real a 2,5%. Em 2025 deveria ser de R$ 1.528 e passa a R$ 1.518); reestruturação do IBAMA e da FUNAI; o novo programa Pé de Meia (que beneficia 3,9 milhões de estudantes do ensino médio); a instalação de mais de 100 unidades dos Institutos Federais; o programa Mais Médicos, que atende populações mais vulneráveis, conta, atualmente, com quase 25 mil médicos contratados pelo governo federal; e o protagonismo do Brasil no cenário internacional (Brics, G20, COP30 etc.). Haveria muito mais a destacar.

Apesar de tantos avanços, o governo falha na comunicação. Até agora não soube montar uma trincheira digital capaz de superar a influência da extrema-direita nas redes. Pesquisas indicam que 76% dos brasileiros se informam por redes digitais e sites de notícias.

A guerra digital exige um número expressivo de profissionais dedicados à comunicação digital, com a possibilidade de formar grandes influenciadores. O fenômeno eleitoral Pablo Marçal, que não dispunha sequer de um minuto de propaganda na TV, deveria servir para alertar sobre a importância dessa ofensiva.

A batalha ideológica

Outro fator que julgo importante para que as forças progressistas não venham a ser derrotadas pelos neofascistas na eleição presidencial de 2026 é a batalha ideológica.

Convém lembrar que o fim da ditadura militar, em 1985, não resultou de suas inerentes contradições. Pesaram sobretudo o desgaste ideológico com as frequentes denúncias de violações de direitos humanos, o testemunho de ex-presos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos, a pressão internacional pela redemocratização do Brasil, e as grandes mobilizações populares como a Passeata dos Cem Mil, as greves operárias do ABC paulista e as concentrações pelas Diretas Já!

Hoje, a esquerda se encontra órfã de referências ideológicas. Elas se multiplicavam antes da queda do Muro de Berlim (1989). Países socialistas serviam de parâmetros às utopias libertárias. O estudo do marxismo e a sua aplicação nas análises da realidade vigoravam. Havia uma militância aguerrida que atuava voluntariamente nas campanhas eleitorais. A extrema-direita se sentia acuada e a polarização da esquerda se dava com a social-democracia.

Isso acabou. Os tempos são outros. E sombrios. A direita se encontra em ascensão eleitoral no mundo. Sua máxima expressão, Donald Trump, ocupa o cargo mais poderoso do planeta. A direita passou a fazer intensa (des)educação política do povo, enquanto as forças progressistas deixaram Paulo Freire dormitar nas prateleiras.

As forças progressistas perderam a capacidade de promover grandes mobilizações populares diante da falta de educação política do povo, da excessiva burocratização dos partidos progressistas, da perda de referências históricas e do esgarçamento do movimento sindical.

Empreendedorismo

O fenômeno do empreendedorismo não é novo. A novidade é ter se tornado um modismo para as classes populares. Vários fatores concorrem para isso: retrocessos e perda dos direitos trabalhistas, precarização das relações de trabalho, desarticulação das estruturas sindicais, supremacia da financeirização sobre a produção, esgarçamento das relações sociais provocado pelas redes digitais etc.

O neoliberalismo, em sua era digital, mina as relações corporativas. A uberização das condições de trabalho e a síndrome dos influenciadores internáuticos, bem como a monetização das redes, criam a ilusão de que todos podem ascender socialmente sem muito esforço. Basta ousar ser patrão de si mesmo. É a nova versão do self-made man.

Outrora a elite era constituída pela nobreza. Na medida em que os títulos nobiliárquicos foram sendo substituídos pelos títulos da Bolsa de Valores, o sangue azul cedeu lugar aos milionários que alcançaram o topo da pirâmide social graças ao empreendedorismo.

Há que acrescer a isso a despolitização da sociedade, agravada desde a queda do Muro de Berlim. Como falar de sociedade pós-capitalista se o socialismo real fracassou? Como incutir nas novas gerações a consciência crítica se o marxismo já não está em voga? Como ampliar o espectro social e eleitoral das forças progressistas se elas abandonaram o trabalho de base?

São desafios que ainda não encontram respostas. E a falta de respostas acelera a ascensão da direita. Faz com que se repitam fatos surpreendentes, como a vitória de Lula sobre Bolsonaro, nas eleições de 2022, por apenas pouco mais de 2 milhões votos, em um universo de 156 milhões de eleitores. Ou a reeleição de Trump em 2024, vitorioso no colégio eleitoral e no voto popular.

Hoje, o eleitor, desprovido de consciência de classe, de relações corporativas (como as sindicais) e imunizado pelos impactos da grande mídia graças às suas bolhas digitais, busca eleger quem lhe possa garantir um lugar ao sol na praia das oportunidades. Na falta de referências revolucionárias (Vietnã, Sierra Maestra, figuras como Mao Tsé-Tung e Fidel) ele vota pensando, primeiro, na prosperidade individual, e não coletiva.

Os eleitores pobres manifestam seu inconformismo ao dar apoio aos que ostentam a bandeira da “antipolítica”. Decepcionados com os políticos tradicionais, preferem os arrivistas, os messiânicos, os que ousam contrariar o perfil da institucionalidade política e se glamourizam pelo histrionismo.

Convém ressaltar que aqueles que se encontram sociologicamente na pobreza não mais se consideram pobres. Para eles, pobres são aqueles que vivem em situação de rua. Um episódio demonstra bem o que assinalo: durante a campanha eleitoral à prefeitura de São Paulo, em 2024, um líder do MTST visitou uma invasão urbana. Não se tratava de ocupação. Um terreno privado havia sido invadido por inúmeras pessoas induzidas por um espertalhão que cobrou por cada espaço em que barracos precários foram erguidos.

Na conversa com um dos invasores, o líder do movimento social indagou como ele se sentia naquela situação de pobreza. O cidadão, vendedor ambulante, reagiu: “Não sou pobre. Tenho um terreno, uma casa e paguei por esse espaço.” Espaço que, com certeza, passado o período eleitoral, o dono da área pedirá reintegração de posse e todos serão expulsos dali pela Polícia Militar.

O fator religioso

Outro importante fator que explica como a esquerda perdeu a mística e a direita “saiu do armário” é a inversão da motivação religiosa. Entre as décadas de 1970 e 1990, a principal rede de organização e mobilização popular no Brasil eram as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e as pastorais populares, inspiradas pela Teologia da Libertação. Isso foi desmantelado com os 34 anos (1978-2013) de pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI. Coincidiu com o espantoso crescimento das Igrejas evangélicas, cuja maioria de fiéis faz uma leitura salvacionista da Bíblia (pauta de costumes) e não libertária como faziam as CEBs.

A Igreja Católica, que havia feito “opção pelos pobres”, viu os pobres optarem pelas Igrejas evangélicas, nas quais encontram acolhimento e suporte social, inexistentes na maioria das paróquias católicas. Acresce-se a isso o erro de os legisladores brasileiros isentarem as Igrejas de pagar impostos como IPTU, ISS e imposto de renda sobre dízimos e doações. Assim, muitas novas Igrejas surgem para facilitar a lavagem de dinheiro…

As forças progressistas, acuadas pelo fundamentalismo religioso dotado de inegável poder eleitoral, ainda não sabem como enfrentar esse fator que constitui o substrato cultural de nosso povo. E o governo não encontrou ainda uma estratégia que se contraponha ao fenômeno do conservadorismo religioso, cujo impacto cultural e político é significativo.

Em resumo, a direita pode, sim, vencer as eleições presidenciais de 2026 caso o governo Lula e as forças progressistas não recalibrem suas estratégias na comunicação, nas trincheiras digitais, na educação política da população, na questão religiosa, no trabalho de base dos partidos políticos progressistas.

Políticas sociais, por mais necessárias e eficientes que sejam, não mudam a cabeça do povo. Só uma ofensiva cultural, ideológica, será capaz de disseminar na população brasileira um novo consenso progressista como o que elegeu Dilma Rousseff duas vezes e Lula, três.

Frei Betto é escritor e educador popular, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

Só come quem paga

Nas sociedades pré-industriais os alimentos tinham mais valor de uso que de troca. Mesmo os servos dos feudos medievais dispunham de um pedaço de terra para cultivar ao menos o necessário às suas famílias. Hoje,  alimento com valor de uso só existe nas etnias indígenas tribalizadas na selva. Fora disso,  têm apenas valor de troca: quem pode comprar, se alimenta; quem não pode, fica condenado à fome. É a lógica do capitalismo, no qual os privilégios do capital estão acima dos direitos humano.

Em raros países, como Cuba, a alimentação é um direito do cidadão e um dever do Estado. A toda família cubana é garantida, mensalmente, uma cesta básica. Outros países, como o Brasil, adotam políticas sociais para assegurar que ninguém passe fome. O Bolsa Família assegura uma renda básica para mais de 21 milhões de famílias em todos os 5.570 municípios do país. O programa beneficia 54,37 milhões de pessoas, das quais 25 milhões são crianças e adolescentes de zero a 18 anos incompletos.

O mundo produz comida suficiente para alimentar 12 bilhões de bocas. E somos, atualmente, 8,2 bilhões de habitantes. Portanto, não há falta de alimentos. Há falta de justiça, de partilha. 

Hoje, 733 milhões de pessoas ao redor do globo não têm acesso a calorias e nutrientes suficientes, e 2,8 bilhões, que não podem pagar por uma dieta saudável, sobrevivem em insegurança alimentar.

Na reunião do G20 no Rio, em novembro último, Lula lançou o Pacto Global contra a Fome e a Pobreza. O tema sempre lhe foi sensível, pois Lula não veio da pobreza, veio da miséria. Dos 12 filhos de sua mãe, dona Lindu, 4 morreram de fome.

O Pacto visa a acionar mecanismos de cooperação entre países, projetos, instituições financeiras e fundos econômicos para desenvolver ações que minorem essa grave violação ao direito humano fundamental – o acesso à alimentação.

Além de transformar o alimento em uma mercadoria com valor de troca, o capitalismo criou mecanismos para controlar toda a cadeia produtiva alimentar como fator de lucros acumulados em mãos privadas. As três maiores gestoras de investimentos do mundo são BlackRock, Vanguard e State Street. Três empresas estadunidenses. Em 2022, as três possuíam US$ 19,7 trilhões em ativos – equivalente a 10,5 PIBs do Brasil. Elas controlam as ações de 21 das 31 corporações que comandam o comércio de alimentos no mundo, entre as quais Coca-Cola, Pepsico, Tyson Foods (carnes) e Bunge (grãos).

A BlackRock detém mais de 5% das ações da Nestlé. As fatias podem parecer pequenas, mas suficientes para exercer pressão. As ações dão direito a voto, o que abre espaço para incidir sobre as diretrizes de uma corporação.

Essas corporações controlam todo o sistema alimentar globalizado: agrotóxicos, sementes, fertilizantes, máquinas agrícolas, farmacêutica animal, processadoras de grãos (tradings), indústria da carne, fabricantes de ultraprocessados e supermercados.

Como enfatiza o cientista político italiano Ricardo Petrella, líder do movimento Slow Food, a BlackRock quer o mundo a seus pés: “Reconfigurar [o mundo] à luz do gigantismo significa principalmente fortalecer a concentração de poder que os últimos 50 anos confirmaram ser perversa. A concentração, especialmente a financeira, ocorre de acordo com os princípios, objetivos e interesses dos sujeitos financeiros e tecnocráticos mais ricos. Os direitos fundamentais à vida e ao bem-estar dos povos da África, América Latina e Ásia são cada vez mais ignorados.”

Segundo dados do relatório financeiro da empresa em 2022, o mercado total de ações e títulos no mundo é estimado em US$ 130 trilhões. Para efeito de comparação, as dez maiores economias do planeta somavam US$ 67,2 trilhões em 2023, ou seja, a metade disso.

Hoje, o capital financeiro em circulação no mundo é muito maior que o chamado “capital produtivo”, dedicado a atividades de comércio, serviços e indústria. Dessa maneira, é fundamental entender a influência das maiores gestoras de investimentos sobre as empresas integradas aos processos produtivos.

Para manter-se poderosa no mercado financeiro, uma corporação precisa sempre entregar melhores resultados. Isso leva a uma pressão por redução de custos, o que significa violações laborais, redução de salários e demissões. E também fraudar o pagamento de impostos, seja legal (elisão) ou ilegalmente (evasão). Bem como pressão sobre governos e parlamentos para que reduzam impostos, cortem direitos dos trabalhadores e promovam ajustes fiscais que afetam prioritariamente as políticas sociais.

O sistema alimentar controlado por corporações é, hoje, responsável por muitos problemas de escala global. Uma das principais preocupações é a ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, câncer e hipertensão, provocadas pelos ultraprocessados.

A pressão pela redução de custos de produção leva à substituição de ingredientes integrais, como farinhas, gorduras, leite e ovos, por fragmentos e derivados, como soro de leite, isolados proteicos e gorduras hidrogenadas. Somados a aditivos, esses fragmentos resultam em produtos que têm composição nutricional pior e cujos efeitos à saúde física e mental no longo prazo ainda não são totalmente conhecidos. Porém, o que se sabe é suficiente para afirmar que os ultraprocessados são um fator associado a doenças e morte precoce.

Investimentos das maiores gestoras do mundo podem dar ainda mais impulso a que essas corporações tenham posições oligopólicas, excluindo concorrentes menores, e provocando milhares de falências ao longo das últimas décadas. Quem passou dos 50 anos de idade deve se perguntar: onde estão as quitandas, os mercadinhos e os armazéns de nossa infância?

Além disso, as corporações reduzem cada vez mais os preços dos ultraprocessados. No  Brasil, 2022 marcou o momento histórico no qual eles se tornaram, na média, mais baratos que alimentos in natura e minimamente processados.

Muitas empresas do sistema alimentar globalizado estão associadas direta ou indiretamente ao colapso climático que afeta o futuro da humanidade e de milhares de espécies animais e vegetais. As emissões  de gases de efeito estufa e a pecuária estão entre as maiores causas de aquecimento global. Monoculturas de grãos (soja, milho etc.) e criação de gado são duas das principais explicações para o desmatamento e a grilagem de terras. No Brasil, em 2022, a quase totalidade da derrubada de matas e florestas esteve relacionada a essas duas atividades.

Diante disso, o que fazer? Valorizar a agroecologia e a agricultura familiar; comprar nos Armazéns do Campo, caso o seu município tenha um; promover compras comunitárias; organizar hortas coletivas; pressionar políticos e empresas que favorecem o comércio de ultraprocessados. É o mínimo.

Frei Betto é escritor e assessor da FAO para a Soberania Alimentar e Educação Nutricional, autor de “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros.