Protocolos do Conclave

Morto o papa Francisco, o governo da Igreja passou automaticamente às mãos do Colégio dos Cardeais, segundo regras redefinidas por João Paulo II, em 1996, no documento Universi Dominici Gregis. Logo que os cardeais se reúnem em Roma, este documento é lido. Sob juramento, os prelados ficam obrigados ao sigilo.

Com a vacância da Sé de Pedro, todos os cardeais da Cúria Romana, inclusive o Secretário de Estado, que equivale à função de primeiro-ministro, são compulsoriamente demitidos. Apenas três permanecem em suas atuais funções: o carmelengo, cardeal Kevin Joseph Farrell, responsável pela transição e eleição do novo pontífice; o penitenciário-mor, cardeal Angelo De Donatis, a quem cabe  perdoar um dos pecados cuja absolvição é reservada à Santa Sé, como a quebra do sigilo da confissão; e o vigário geral da diocese de Roma, cardeal Mauro Gambetti.

Os poderes do Colégio Cardinalício na fase transitória são limitados. Não pode, por exemplo, modificar regras que regem a eleição papal, nomear novos cardeais ou tomar qualquer decisão que possa vir a constranger a autoridade do futuro pontífice.

A Capela Sistina é preparada para o conclave. Visitas turísticas são suspensas, para que a equipe de segurança investigue se há no recinto dispositivos eletrônicos.

São convocados à reclusão todos os cardeais presentes no Vaticano. Dos atuais 252 cardeais, 135 estão aptos a votar, se não tiverem completado 80 anos. Serão 133 eleitores. Os cardeais Antonio Cañizares, da Espanha, e Vinko Puljic, da Bósnia, não irão por motivo de saúde.

O início do conclave ocorre tão logo haja tempo suficiente para que todos os prelados cheguem a Roma. Em 1922, na eleição de Pio XI, cardeais da América do Norte e do Sul perderam o conclave porque os navios não atracaram a tempo. Hoje, as viagens aéreas tornam tudo mais fácil.
Uma vez trancados no Vaticano, nenhum deles pode sair, até que o novo pontífice esteja escolhido, exceto em caso de doença ou acidente com risco de vida e após consenso da maioria de seus pares.

Ingressam no conclave, junto com os cardeais, o secretário do Colégio dos Cardeais, Dom Lorenzo Baldisseri, que foi núncio no Brasil durante 9 anos (2002-2012); o mestre das liturgias papais, acompanhado por dois mestres de cerimônia e dois religiosos da sacristia papal; um assistente para o cardeal decano; uns poucos frades ou monges de diferentes idiomas, para atuar como confessores; dois médicos; e o pessoal do serviço de cozinha e limpeza, em geral freiras.

Nenhum cardeal pode levar assistente pessoal, exceto médico particular em caso de doença grave. Nada de computadores, celulares, jornais, TV, rádio, tablets ou aparelhos de gravação de som ou imagem. É mantida apenas uma linha telefônica, de uso exclusivo do carmelengo em caso de emergência.

Apenas três cardeais têm o direito a contatar seus escritórios: o penitenciário-mor; o vigário da diocese de Roma; e o pároco da Basílica de São Pedro. 

As normas da Igreja proíbem conchavos e articulações eleitorais antes do conclave. Isso remonta ao papa Félix IV (526-530), que pressionou o clero e o senado romanos a elegerem como seu sucessor Bonifácio, seu arcediago. Os senadores promulgaram um edito vetando qualquer discussão sobre a eleição do futuro papa enquanto o atual  estivesse vivo.

A rigor, qualquer católico solteiro do sexo masculino, maior de trinta e cinco anos, é virtual candidato a papa e poderá vir a calçar as sandálias do Pescador, ainda que seja leigo. Se eleito, deverá ser imediatamente ordenado bispo, como ocorreu com João XIX (eleito em 1024) e Benedito IX (eleito em 1032).

Frei Betto é escritor e educador popular, autor de “Batismo de sangue” (Rocco), entre outros livros.

Quem será o novo Papa?

Não participo de apostas e conheço bem os bastidores da Igreja Católica. Este é o sexto conclave que acompanho. Quase nunca as previsões predominantes são confirmadas. Exceto a eleição de Bento XVI, em 2005, pois o cardeal Ratzinger era o teólogo preferido de João Paulo II e ocupava altas funções no Vaticano. Bergoglio, cardeal de Buenos Aires, foi o segundo mais votado em 2005, me confidenciou um cardeal. Embora sua eleição a papa, em 2013, após a renúncia de Bento XVI, tenha surpreendido o mundo, era prevista pelo colégio cardinalício.

O que conheço dos bastidores de conclaves me foi contado por um cardeal que participou de dois. Como ocorre desde a eleição de Paulo VI, em 1963, os cardeais dos EUA tentarão, mais uma vez, emplacar um de seus pares. Em vão. Por serem os mais ricos e arrogantes, há muita rejeição a eles entre os eleitores.

Nas bolsas de apostas muitos investem na eleição de um africano, já que a África é, hoje, o continente onde o catolicismo mais se expande. O último pontífice africano data do século V, papa Gelásio (492-496). Ora, se a preferência dos eleitores for por alguém que dê continuidade à linha pastoral de Francisco será difícil encontrar um africano, embora ele tenha nomeado 15 entre os 18 cardeais daquele continente. Com exceção do cardeal Peter Turkson, de Gana, os demais são moderados ou conservadores. Nem sempre Francisco promoveu arcebispos progressistas, já que levava em conta o consenso entre os bispos do país.

Minha previsão é de que o papado voltará às mãos dos italianos, inconformados por terem perdido a preferência desde a eleição de Wojtyla. Entre os seis cardeais italianos nomeados por Francisco, cinco abraçam a mesma linha pastoral: Zuppi (Bolonha); Betori (Florença); Montenegro (Sicília); Lojudice (Montalcino); e Gambetti (vigário geral do Vaticano).

Encaro também como azarões os cardeais Tagle, das Filipinas, 67 anos, e o inglês Timothy Radcliffe, 79 anos, meu confrade na Ordem Dominicana. Era o teólogo preferido de Francisco e assessor de vários sínodos. A alegação de ter idade avançada já não procede como outrora, porque atualmente um pontificado de 12 anos, como o de Francisco, é considerado longo, e as comunicações e meios de locomoção são bem mais rápidos.

Os cardeais brasileiros teriam alguma chance? Acredito que não. São também prelados “do fim do mundo” como Bergoglio, mas nenhum dos oito se destaca como “papabile”. Aliás, quase tivemos um papa brasileiro. No conclave que elegeu Wojtyla, em 1978, o primeiro a obter 2/3 dos votos foi o cardeal de Fortaleza, Aloísio Lorscheider. Ao ser consultado se aceitava o pontificado, declinou alegando ter oito pontes de safena e a Igreja, que havia perdido João Paulo I, ocupante da Sé de Pedro por apenas 33 dias, não suportaria outro conclave em pouco tempo. Detalhe: o eleito, João Paulo II, faleceu em 2005; Lorscheider, em 2007.

Frei Betto é escritor e educador popular, autor de “Jesus rebelde – Mateus, o Evangelho da ruptura” (Vozes), entre outros livros.

Sobre Conclaves

Conclave, palavra que deriva do latim cum clave, significa “com chave”, uma vez que os cardeais eleitores ficam trancados no Vaticano até elegerem um novo papa.

O sistema de eleição, tal como conhecemos hoje, foi instituído em 1274, durante o Concílio de Lyon II, pelo papa Gregório X. A motivação foi o conclave que o elegeu, o mais longo da história, em Viterbo. Durou 33 meses, quase três anos (1268 a 1271). Os cardeais se dividiam entre facções políticas, partidários dos angevinos (pró-França) e dos gibelinos (pró-Sacro Império Romano-Germânico).

Isso causou o impasse prolongado, e tanta frustração e revolta, que a população local trancou os cardeais no palácio episcopal e, no início do inverno, removeu o teto e restringiu a entrada de alimentos para forçá-los a apressar a escolha do novo pontífice.

O eleito, Gregório X (1271-1276), criou então regras para tornar o processo mais rápido e eficiente, como isolamento dos cardeais; restrição de contato externo; redução gradual de conforto (menos refeições); exigência de maioria qualificada (2/3) para a eleição, de modo a pressionar a decisão.

A eleição dos papas já era feita por cardeais desde 1059, por iniciativa do papa Nicolau II, mas não havia um sistema fechado nem regras tão definidas. O processo podia durar meses, envolver influência externa (sobretudo de reis e imperadores), e ser bastante caótico.

O conclave mais breve da história da Igreja Católica, realizado na Capela Sistina, foi o que elegeu o cardeal Eugenio Pacelli, ex-núncio na Alemanha nazista, papa Pio XII. Durou apenas 24 horas, com três votações realizadas no mesmo dia 1º de março de 1939 por 62 cardeais.

Outro conclave longo foi o que elegeu Celestino V. Morto Nicolau IV, em 1292, cardeais italianos e franceses fizeram do conclave arena de disputas pelo poder, movidos mais por interesses políticos que pelas luzes do Espírito Santo. Após dois anos e três meses de impasse na eleição do novo papa, Pedro Morrone, eremita italiano, de sua caverna nas montanhas enviou carta aos cardeais, instigando-os a não abusar da paciência divina. O conclave viu na carta um sinal divino e decidiu fazer do monge o novo chefe da Igreja. Pedro Morrone relutou, não queria abandonar sua vida de pobreza, solidão e silêncio, mas os prelados o convenceram de que o consenso em torno de seu nome tiraria a Igreja do impasse.

Com o nome de Celestino V, tornou-se papa em agosto de 1294. Menos de quatro meses depois, a politicagem vaticana o levou ao limite de sua resistência. E levantou a pergunta inesperada: posso renunciar? O colégio cardinalício não se opôs e, numa bula histórica, Morrone justificou-se, alegando que deixava o trono de Pedro para salvar sua saúde física e espiritual. A 13 de dezembro do mesmo ano retornou à solidão contemplativa nas montanhas. Vinte anos depois foi canonizado, exaltado como exemplo de santidade. A 19 de maio a Igreja celebra a festa de São Pedro Celestino.

Antes de Celestino V, o papa Gregório XII renunciou em 1415 para facilitar a resolução da crise durante o Grande Cisma do Ocidente, quando três papas estiveram à frente da Igreja.

O terceiro papa a renunciar foi Bento XVI, em 2013, devido à idade avançada e falta de alento. Intelectual, Ratzinger vivia o conflito entre sua afeição à teologia e as exigências de administração da Igreja.

Pressinto que o conclave responsável pela eleição do sucessor de Francisco não será tão rápido quanto os que elegeram Ratzinger e Bergoglio, que não ultrapassaram 48 horas. Mas sobre isso escreverei em seguida.

Escritor e educador popular, autor de “Jesus rebelde – Mateus, o Evangelho da ruptura” (Vozes), entre outros livros.

O Funeral do Papa Francisco

A morte de um papa não é apenas o fim de um pontificado — é o encerramento de um capítulo na história viva da Igreja e do mundo. É um momento carregado de simbolismo, introspecção e comunhão. Para milhões de fiéis, a partida do sucessor de Pedro é vivida com emoção e reverência, como se perdessem não apenas um líder, mas um pai espiritual.

Todos os procedimentos que seguem o falecimento de um papa são meticulosamente definidos na Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis, promulgada por João Paulo II, em 1996. Esse documento estabelece os ritos e protocolos a serem seguidos até a eleição de um novo pontífice.

A confirmação da morte é um dos momentos mais simbólicos. Cabe ao camerlengo — hoje o cardeal estadunidense Kevin Joseph Farrell — verificar o falecimento. Seguindo uma tradição secular, ele chama o pontífice pelo nome de batismo, neste caso “Jorge Mario Bergoglio”, por três vezes. Diante do silêncio, declara oficialmente a morte. Em seguida, inutiliza o Anel do Pescador, símbolo do poder pontifício, para que ninguém o use indevidamente. É um gesto simples, mas carregado de significado: o poder, que nunca foi propriedade pessoal, retorna às mãos da Igreja.

O corpo do papa é velado de forma íntima, geralmente na capela do Mosteiro Mater Ecclesiae ou no Palácio Apostólico. É nesse momento que os mais próximos — auxiliares, religiosos e familiares — podem se despedir em clima de oração e silêncio. Depois, o caixão é levado à Basílica de São Pedro, onde por três dias o povo pode prestar suas últimas homenagens.

O funeral, carregado de simbolismo e solenidade, é presidido pelo cardeal decano do Colégio Cardinalício. No caso do Papa Francisco, espera-se que o rito também reflita sua profunda identificação com os pobres, os marginalizados e com a espiritualidade inaciana. Imaginar esse momento é quase ouvir ecos de homilias simples, palavras de ternura aos mais vulneráveis, e aquele olhar que, tantas vezes, falou mais do que mil discursos.

Após a missa celebrada na Praça de São Pedro, o corpo é levado à Basílica de Santa Maria Maior — igreja romana particularmente querida por Francisco, que ali rezava antes e depois de cada viagem apostólica. 

Dentro do caixão, além do corpo, são colocados elementos que contam sua história: moedas cunhadas durante o pontificado, um pergaminho com um resumo de sua vida e de sua missão como papa, e a veste litúrgica que simboliza seu serviço à Igreja.

Com o enterro, inicia-se o período da sede vacante. A Sé de Pedro está vazia. Os sinos da Basílica soam com um timbre diferente. Começa, então, o conclave, reunião dos cardeais na Capela Sistina, um dos momentos mais solenes da vida da Igreja. Ali, sob a presença silenciosa do Juízo Final de Michelangelo, eles rezam, discutem, votam para eleger o novo pastor.

O corpo do papa Francisco será sepultado no próximo sábado, em Roma. Antes, haverá cerimônias fúnebres na Praça de São Pedro, com missa presidida pelo decano do colégio cardinalício, Giovanni Battista Re. Em seguida, o caixão será conduzido em procissão até a Basílica de Santa Maria Maior, indicada por Francisco em seu testamento por ser a igreja de sua predileção. Há mais de um século nenhum papa foi sepultado fora dos muros do Vaticano. Os predecessores de Francisco estão enterrados nas grutas vaticanas, abaixo do altar da Basílica de São Pedro.

É tradição os papas serem enterrados em um triplo caixão, de cipreste, chumbo e carvalho. Francisco manifestou o desejo de que o seu fosse simples, de madeira revestida de zinco por dentro. E não será colocado sobre um catafalco; na lápide, haverá apenas a palavra “Franciscus”, sem nenhum adorno. Todas as exéquias serão custeadas por um benfeitor amigo de Francisco, sem onerar os cofres da Igreja.

Escritor e educador popular, autor de “Jesus militante – Evangelho e projeto político do Reino de Deus” (Vozes), entre outros livros.

Páscoa em tempo de incertezas

A Páscoa é, por excelência, a celebração da vida que vence a morte. Mais que data religiosa, traz em seu bojo uma mensagem universal de esperança, renovação e possibilidade de recomeço. A ressurreição de Jesus Cristo, há mais de dois mil anos, continua a ecoar como símbolo máximo de superação diante do impossível. E, hoje, essa mensagem se faz necessária em um mundo mergulhado em incertezas econômicas e sociais e guerras atrozes.

Vivemos um momento de profunda crise global agravada pelo desatino do (des)governo Trump. Inflação elevada, desemprego crescente, cadeias produtivas fragilizadas, uberização das relações trabalhistas e um abismo cada vez maior entre os que têm muito e os que mal sobrevivem.

Em todo o mundo, famílias enfrentam desafios diários para colocar comida na mesa e sonhar com um futuro minimamente estável. A esperança parece escassa, o desânimo se espalha como uma sombra silenciosa, a distopia abate inúmeros jovens.

Nesse cenário, a mensagem da Páscoa brota como luz insistente e resistente. O sepulcro vazio, sinal da ressurreição de Cristo, é uma metáfora significativa: o fim nem sempre é o fim. Aquilo que parecia perdido, vencido, destruído, pode se transformar em ponto de partida para algo novo. Jesus, que sofreu humilhação, dor e morte, ressurgiu como sinal de que o amor, a justiça e a verdade não podem ser enterrados.

A crise econômica aprofundada pela guerra das tarifas, com toda sua força destrutiva, nos coloca diante de um “sábado de silêncio”, como aquele vivido pelos discípulos entre a morte e a ressurreição de Jesus. Um tempo de incerteza, de luto, de espera. Mas o domingo chega. A pedra do túmulo é removida. A vida ressurge. E é justamente aí que se situa o convite pascal: acreditar que há esperança, que há um “depois”, mesmo quando tudo parece perdido.

Essa esperança não é ingênua. Não ignora a dor nem minimiza os sofrimentos. Pelo contrário, nasce justamente no coração da adversidade e como clamor de justiça. Jesus não foi poupado do sofrimento e o assumiu. Do mesmo modo, a Páscoa nos convida a enfrentar as dores do presente com coragem e fé, certos de que a crise, por mais dura que pareça, não tem a última palavra.

A ressurreição não é apenas um acontecimento espiritual. É também fato político, chamado à ação. Quando Jesus ressuscita, envia seus discípulos a transformar o mundo. A Boa Nova da ressurreição não se limita ao consolo pessoal; é fermento de mudança social, ética e econômica. O Cristo ressuscitado convoca seus seguidores a serem agentes de justiça, solidariedade e renovação.

Diante da crise econômica mundial, da degradação ambiental e dos conflitos bélicos, essa convocação se torna urgente. Ressuscitar, hoje, é promover políticas centradas no cuidado dos mais pobres, fomentar economias sustentáveis, preservar a natureza, alcançar a paz como fruto de justiça, combater as desigualdades sociais. É recusar a indiferença,  agir com compaixão. É erguer os que desanimam, partilhar o pão, dar voz aos silenciados. É fazer a ressurreição de Cristo se traduzir em ressurreições cotidianas, visíveis, palpáveis.

A crise, por mais aguda que seja, não anula a possibilidade de recomeços. Ao contrário, pode ser o terreno fértil para novas sementes libertadoras. A mensagem do túmulo vazio é que nenhuma escuridão é definitiva. Nenhuma morte, econômica, moral ou social, é irreversível. Há sempre um terceiro dia.

Tomara que esta Páscoa, em meio a tantas instabilidades e incertezas, nos inspire a não perder a esperança, não sucumbir ao medo e não aceitar a injustiça como normal. A ressurreição de Jesus deve nos mover à solidariedade e à construção de um novo modelo de sociedade, mais humana, justa e fraterna. Afinal, a verdadeira vitória da Páscoa não está apenas na superação da morte, mas na escolha diária pela vida – e vida em plenitude.

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus rebelde – Mateus, o evangelho da ruptura” (Vozes), entre outros livros.

Documentos de Santa Fé e o perfil religioso da América Latina

A América Latina passou por profundas transformações religiosas ao longo das últimas décadas do século XX. Um dos fenômenos mais notáveis foi o crescimento expressivo das Igrejas evangélicas, especialmente as de orientação pentecostal e neopentecostal. Embora diversos fatores internos — crises sociais, esvaziamento da Igreja Católica, e a busca por experiências religiosas mais pessoais — tenham contribuído para esse processo, há também influências externas, políticas e estratégicas, que desempenharam papel crucial.

Nesse contexto, destacam-se os Documentos Santa Fé I (1980) e Santa Fé II (1988), produzidos por setores conservadores da política e dos serviços de inteligência dos Estados Unidos, com o objetivo de orientar a política externa do país frente à América Latina durante a Guerra Fria.

Esses documentos foram elaborados em reuniões na cidade de Santa Fé, no Novo México (EUA), e não apenas formulam uma crítica contundente à Teologia da Libertação, mas também defendem ações práticas que acabaram contribuindo para o fortalecimento de movimentos evangélicos na região. (Os documentos podem ser encontrados em: https://www.oocities.org/proyectoemancipacion/documentossantafe/documentos_santa_fe.htm)
 
Santa Fé I e II
 
Em maio de 1980, o governo dos EUA, então presidido por Jimmy Carter, emitiu o Documento Santa Fé I, denominado “Uma nova política interamericana para os anos 80”. E no governo Ronald Reagan foi publicado o Documento Santa Fé II, intitulado “Uma estratégia para a América Latina nos anos 90”.

Os signatários dos dois documentos afirmam que “o regime democrático é aquele no qual o governo tem a responsabilidade de preservar a sociedade vigente de ataques externos ou da intromissão do aparato estatal permanente.” Ou seja, reduzir ao máximo a intervenção do Estado na economia. Na prática, privatizar, privatizar, privatizar. O que o capitalismo tenta esconder é que a maioria das privatizações é financiada por dinheiro público!

No contexto da Guerra Fria, os documentos alertavam para a “ofensiva cultural marxista”, ao afirmar: “Para os teóricos marxistas, o método mais promissor para a criação de um regime estatista em um ambiente democrático se obtém mediante a conquista da cultura da nação. De acordo com este modelo, todos os movimentos marxistas na América Latina têm sido encabeçados por intelectuais e estudantes, e não por trabalhadores”.

Isso explica o horror que a direita tem de intelectuais e cientistas. Prefere pessoas analfabetas ou semianalfabetas, mais fáceis de serem manipuladas.

O Documento Santa Fé II assinala que nesse contexto “deve ser entendida a Teologia da Libertação, uma doutrina política disfarçada de crença religiosa com uma significação antipapal e contrária à livre empresa, com o propósito de debilitar a independência da sociedade”.

Na época, o papa era João Paulo II, polonês anticomunista, aliado de Reagan. Hoje, com certeza, a alusão à “significação antipapal” não constaria, já que o papa Francisco é considerado “comunista” até mesmo por bispos estadunidenses.
 
Contexto da Guerra Fria e a preocupação ianque

Durante a Guerra Fria, os EUA viam a América Latina como região estratégica na contenção da expansão do socialismo. Após a Revolução Cubana, em 1959, aumentou o temor de que outros países latino-americanos seguissem o mesmo caminho, abraçando regimes socialistas. A ascensão da Teologia da Libertação, nas décadas de 1960 e 1970 — um movimento dentro do catolicismo que combina fé cristã com análises marxistas da sociedade, defendendo a luta contra a opressão e a injustiça social — passou a ser vista com crescente preocupação pelos setores conservadores dos EUA, tanto no governo quanto em think tanks e setores religiosos.

O primeiro documento, conhecido como Santa Fé I, foi elaborado em 1980 por um grupo de assessores conservadores de política externa ligados a Ronald Reagan. Seu objetivo era fornecer diretrizes para a ação americana na América Latina diante do avanço do marxismo e de movimentos revolucionários. O texto traz uma crítica direta à Teologia da Libertação, classificando-a como uma ferramenta ideológica do marxismo que se infiltrara na Igreja Católica. Os autores alegavam que padres e bispos progressistas, inspirados por essa teologia, estavam incentivando a luta de classes, a desobediência civil e a revolução armada.

O documento defende a necessidade de conter essa influência teológica por meio de uma “reorientação cultural” que envolva o incentivo a formas alternativas de cristianismo. Embora o texto não mencione explicitamente o apoio a Igrejas evangélicas, a lógica subjacente é clara: a necessidade de promover formas de religiosidade  anticomunistas, individualistas, “apolíticas” e alinhadas aos valores do “mundo livre” capitalista.

Igrejas evangélicas pentecostais se encaixam perfeitamente nesse perfil, pois enfatizam a salvação pessoal, a prosperidade individual, a autoridade bíblica e a rejeição de ideologias políticas consideradas subversivas.

O Santa Fé II, publicado em 1988, em pleno governo Reagan, reafirma e aprofunda essas diretrizes. O novo documento volta a criticar a Teologia da Libertação, classificando-a como ameaça à estabilidade política e à influência dos EUA na América Latina. Além disso, alerta para o papel das universidades católicas, ONGs e outras instituições ligadas à Igreja na difusão de ideias “marxistas”. A solução proposta segue na mesma linha: enfraquecer a influência dessas correntes através de um reforço da “guerra cultural”, promovendo valores tradicionais, religiosos e pró-Ocidente.

Embora os Documentos Santa Fé não defendam explicitamente o financiamento ou a implantação de Igrejas evangélicas, na prática, suas diretrizes são interpretadas e operacionalizadas por diversas agências e grupos com atuação direta. Missões evangélicas norte-americanas, como a Summer Institute of Linguistics (SIL) e organizações pentecostais como as Assembleias de Deus, receberam incentivos diretos e indiretos para expandirem sua atuação na América Latina, especialmente em regiões indígenas e pobres, tradicionalmente negligenciadas pela Igreja Católica.

O apoio envolvia desde isenções fiscais e vistos facilitados para missionários, até financiamentos por parte de fundações conservadoras estadunidenses. Essas Igrejas e missões foram encaradas como aliadas ideológicas por promoverem valores como disciplina, obediência, moralidade conservadora e anticomunismo. E sua penetração em comunidades carentes contribuía para desmobilizar movimentos de base influenciados pela Teologia da Libertação, desviando o foco da luta política para questões espirituais e individuais.
 
O ataque à Teologia da Libertação

A estratégia delineada nos documentos Santa Fé mostrou-se eficaz a médio e longo prazos. A partir da década de 1980, diversos fatores contribuíram para o enfraquecimento da Teologia da Libertação: a repressão por regimes autoritários, a censura do Vaticano sob o pontificado de João Paulo II, e a ascensão de lideranças eclesiásticas conservadoras em várias dioceses.

A pressão estadunidense, tanto direta quanto indireta, também desempenhou papel importante. Ao mesmo tempo, o crescimento exponencial das Igrejas evangélicas transformava o panorama religioso latino-americano.

O discurso dessas Igrejas, centrado na experiência pessoal de conversão, na promessa de prosperidade e na rejeição de ideologias políticas, contrasta com a proposta de transformação estrutural da Teologia da Libertação. Muitos fiéis encontram nelas uma alternativa mais imediata e emocional às suas angústias, ao mesmo tempo em que se afastam dos discursos de luta de classes e mobilização política.

O impacto dos Documentos de Santa Fé e da estratégia que inspiraram continua a ser sentido. A América Latina, que até meados do século XX era majoritariamente católica, passou a ter uma presença evangélica cada vez mais forte. Muitos países assistiram à ascensão de lideranças políticas vinculadas a Igrejas evangélicas, e que expressam uma visão de mundo fortemente conservadora e alinhada a valores tradicionais.

Além disso, o declínio da Teologia da Libertação abriu espaço para uma nova configuração religiosa e política, marcada por  menor presença das Comunidades Eclesiais de Base e maior protagonismo de Igrejas com discursos centrados na prosperidade, no combate a “inimigos espirituais” e na negação da política como instrumento de transformação social.
 
Conclusão  
 
Os Documentos de Santa Fé I e II são mais do que simples relatórios de análise política. São instrumentos estratégicos que ajudaram a moldar o panorama religioso e ideológico da América Latina nas últimas décadas do século XX e neste início do século XXI. Ao identificarem a Teologia da Libertação como inimiga e defenderem uma reorientação cultural na região, contribuíram diretamente para a ascensão das Igrejas evangélicas como alternativa ideológica e espiritual.

Embora não sejam a única causa desse fenômeno, desempenharam papel decisivo ao alinhar interesses geopolíticos, religiosos e culturais em uma frente comum contra o que era percebido como ameaça do “marxismo teológico”. O resultado foi uma profunda transformação no tecido religioso latino-americano — cujos efeitos continuam a reverberar até hoje.

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus revolucionário” (Vozes), entre outros livros.

Resgatar a confiança: Como o governo Lula pode melhorar sua imagem nas futuras pesquisas

O governo Lula inicia o terceiro ano de mandato enfrentando um desafio central: recuperar a confiança de parcela expressiva da população que permanece cética quanto aos rumos do país. Apesar de avanços em áreas como o controle da inflação e o crescimento do PIB acima das expectativas em 2024, os índices de aprovação pessoal e do governo ainda oscilam em patamares inferiores ao desejado. Para reverter esse quadro e ganhar fôlego político até o fim do mandato, o governo precisa assumir prioridades claras, comunicar melhor seus feitos e fortalecer alianças estratégicas com a sociedade.

Um dos principais gargalos da atual gestão é a comunicação. Apesar de conquistas concretas — como a valorização do salário mínimo, o avanço em obras do PAC e em programas sociais —, parte significativa da população desconhece ou não associa essas medidas ao governo federal.

Lula e sua equipe precisam investir em uma comunicação mais ágil, direta e com linguagem acessível, especialmente nas redes digitais, onde a disputa de narrativas com a direita é feroz. É preciso sair da bolha institucional e conversar com o Brasil real — utilizar rádios regionais, influenciadores populares e lideranças comunitárias para levar a mensagem adiante. Dialogar com os segmentos religiosos, hoje em dia expressivos na formação da opinião pública e na mobilização popular.

Embora os indicadores macroeconômicos estejam melhores, a percepção no bolso do cidadão ainda é de dificuldade. O governo deve concentrar esforços em políticas que impactem diretamente na vida das famílias de renda mais baixa. Isso inclui: acelerar o programa Minha Casa, Minha Vida com foco na faixa 1 (renda mensal até R$ 2,85 mil), beneficiando os mais pobres; crédito acessível a pequenos empreendedores, especialmente informais e MEIs; nova rodada de valorização do salário mínimo e ampliação de programas de qualificação profissional (deveria ser a terceira condicionalidade do Bolsa Família); estímulo à indústria nacional e às compras públicas locais, em especial produtos da agricultura familiar, para geração de empregos em larga escala.

A pauta da segurança pública ainda é um ponto frágil. O aumento da violência urbana e a sensação de insegurança nas grandes cidades pressionam o governo a adotar uma postura mais assertiva. Lula precisa assumir o tema como uma prioridade nacional — sem ceder ao populismo penal, mas também sem se esquivar do debate. Daí a importância de ampliar o Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci 2), priorizar a parceria com os Estados e investir em tecnologia para as polícias.

A governabilidade depende da articulação política. Lula deve fortalecer o diálogo com o Congresso, buscando pactos mínimos em temas de interesse popular — como reforma tributária sobre o consumo, desoneração da folha para setores estratégicos e regulamentação das plataformas digitais.

Também é crucial recompor pontes com setores do centro político e com governadores de diversos espectros ideológicos, promovendo uma agenda federativa que contemple obras, investimentos e programas sociais coordenados.

A juventude que em 2022 foi às urnas por esperança, hoje se mostra distante da política tradicional. O governo precisa ampliar as políticas para esse público — educação de qualidade, cultura periférica, esportes juvenis, apoio ao empreendedorismo jovem e protagonismo ambiental.

Programas como o Pé-de-Meia são importantes, mas precisam ser amplamente divulgados. O engajamento dessa geração será decisivo para a consolidação de um legado progressista e sustentável.

Lula voltou a colocar o Brasil no mapa geopolítico, mas essa atuação precisa gerar dividendos concretos internamente. A realização da COP30 em Belém em 2025, por exemplo, é uma oportunidade de ouro para posicionar o Brasil como referência em transição energética, proteção ambiental e inclusão social.

Ampliar os investimentos em energia limpa, proteção da Amazônia com emprego e renda, e cooperação internacional pode fortalecer a imagem do governo, especialmente entre setores urbanos e ambientalistas.

Mais do que disputas retóricas, a grande arma de Lula para reverter a imagem em queda nas pesquisas é entregar resultados concretos para quem mais precisa. Comunicar bem, priorizar o que importa e manter uma escuta ativa com a sociedade são pilares para resgatar confiança e garantir a governabilidade. O tempo ainda está a favor — mas o relógio político-eleitoral começa a acelerar.

Frei Betto é escritor, autor de “Quando fui pai de meu irmão” (Alta Books/70), entre outros livros.