Feliz Ano Novo aos que acordam em 2021 sem a ressaca da culpa, plenos de vida na qual a paixão sobrepuja a omissão e o encanto tece luzes onde a amargura costuma bordar teias de aranha. Feliz ano a quem não sonega afetos, arranca de si fontes onde borbulham transparências e não mira os que lhe são próximos como estranhos passageiros de uma viagem sem pouso, praias ou horizontes.
Felizes aqueles que abandonam no passado seus excessos de bagagem e, coração imponderável, recolhem à terra a pipa do orgulho e ousam a humildade.
Ano Novo a todos que despertam ao som de preces e agradecem o tido e não havido, maravilhados pelo dom da vida, malgrado tantas rachaduras nas paredes, figos ressecados e gatos furtivos.
Bom ano a quem gosta de feijão e se compraz nos grãos sobrados em prato alheio; a vida é dádiva, contração do útero, desejo ereto, espírito glutão insaciado de Deus.
Novo seja o ano àqueles que nunca maldizem, poupam palavras e semeiam fragrâncias nas veredas dos sentimentos.
Seja também feliz o ano de quem se guarda no olhar e se tropeça não cai no abismo da inveja nem se perde em escuridões onde o pavor é apenas o eco de seus próprios temores.
Novo ano a quem se recusa a ser tão velho que ambiciona tudo novo: corpo, carro e amor; viver é graça a quem acaricia suas rugas e trata seus limites como cerca florida de choupana montanhês.
Tenham um feliz ano todos que sabem ser gordos e felizes, endividados e alegres, carentes de afago, mas repletos de vindouras fortunas em seus anseios.
Feliz Ano Novo aos órfãos de Deus e de esperanças, aos cavaleiros da noite e às damas que jamais provaram do leite que carregam em seus seios.
Felizes sejam, neste novo ano, os homens ridiculamente adornados, supostos campeões de vantagens; aqueles que nada temem, exceto o olhar súplice do filho e o sorriso irônico das mulheres que não os querem.
Felizes sejam também as mulheres que se matam de amor e dor por quem não merece, e que, no espelho, se descobrem tão belas por fora quanto o sabem por dentro.
Seja novo o ano para os bêbados que jamais tropeçam em impertinências e para quem não conspira contra a vida alheia e respeita os protocolos sanitários.
Feliz Ano Novo para quem coleciona utopias, faz de suas mãos arado e, com o próprio sangue, rega as sementes que cultiva.
Sejam muito felizes os velhos que não se disfarçam de jovens e os jovens que superam a velhice precoce; seus corações tragam a idade alvíssara de emoções férteis.
Muitas felicidades aos que trazem em si a concha do silêncio e, à tarde, oferecem em suas varandas chocolate quente adocicado com sorrisos de sabedoria.
Um ano feliz aos que não se ostentam no poleiro da própria vaidade, tratam a morte sem estranheza e brincam com a criança que os habita.
Um Ano Novo muito feliz a todos nós que juramos sequestrar os vícios que carregamos e não pagar o resgate da dependência; o futuro nos fará magros por comer menos; saudáveis por tragar oxigênio; solidários por partilhar dons e bens.
Feliz 2021 ao Brasil que circunscreve a geografia do paraíso terrestre, sem terremotos, tufões, furacões, maremotos, desertos, vulcões, geleiras, tornados e montanhas inabitáveis. Conceda-nos, Deus, a bênção de tantos dons e nos livre de governos necrófilos.
Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor de “O diabo na corte – uma leitura crítica do Brasil atual” (Cortez).