Para suportar a quarentena
Avanços outrora alcançados pela humanidade perdem-se por falta de uso e a ausência de memória. Quem curte cozinha bem o sabe. Minha avó fazia um delicioso Miss Guynt, abrasileirado para “missiguinte”, bolo de quatorze camadas finas embebidas de conhaque e recheadas de goiabada em calda – na falta de cerejas utilizadas pelos britânicos antes de se fixarem na mina de Morro Velho, em Minas, onde minha avó aprendeu a receita.
Minha mãe tornou-se mestra na arte desse bolo que, quanto mais velho, melhor, e quanto mais fina a fatia, mais saborosa. Hoje, dos oito filhos, só dois dominam o seu preparo.
O gesto que não cria hábito não vira tradição. Por isso, já não sabemos a receita dos pães egípcios que levavam semanas para desidratar, e por isso eram os preferidos dos navegadores, nem dos anticicatrizantes medievais aplicados após a retirada de ventosas da pele.
Uma riqueza inestimável que estamos perdendo é a do silêncio. Nossa sociedade é ruidosa nos mínimos detalhes. Malgrado o avanço da tecnologia, ainda não se inventaram liquidificadores e britadeiras silenciosos. Há muitas “falas” ao nosso redor. A publicidade de rua esgarça o nosso espírito. Daí ser um deleite para a alma caminhar por uma cidade desprovida de outdoors, como Praga. Como os olhos ficam descansados quando podem apreciar a natureza e a estética dos monumentos arquitetônicos! Como dá prazer fitar o mar que, como dizia Hélio Pellegrino, é o pão do espírito!
Há quem tema o silêncio e, ao entrar em casa, trata de ligar todos os aparelhos: telefone, TV, rádio etc. São pessoas incapazes de escutar o silêncio interior. Sentem dificuldade em “amar o próximo como a si mesmo”. Quem não se gosta tem resistência a gostar dos outros. E desconta neles o mal-estar íntimo. É no silêncio que posso descobrir um Outro que não sou eu e, no entanto, como salientou Tomás de Aquino, funda a minha verdadeira identidade.
A noivos que se preparam para o casamento sempre pergunto: “Vocês são capazes de ficar juntos, em silêncio, sem saudades de uma tesoura de jardineiro?” Se o silêncio entre o casal pesa, suscita desconfianças e indagações tipo “o que você está pensando?” ou “por que está tão calado?”, é sinal de que a relação não vai bem. Meus pais, aos 60 anos de casados, passavam horas, lado a lado, em silêncio. Ela bordando, ele lendo, na suavidade de quem aprendeu que a profundidade do sentimento dispensa palavras. Como a oração que agrada a Deus.
No litoral capixaba, saí de madrugada num barco com três pescadores. O que mais me impressionou foi o silêncio entre eles, como se temessem precipitar o despertar do dia. Mesmo na penumbra, um adivinhava a vontade e o gesto do outro.
Conheço o silêncio dos monges, embora os conventos atuais, encravados nas cidades, sejam em geral ruidosos. Nas exceções à regra, os religiosos comem em silêncio, caminham pelo claustro sem que ninguém os interrompa, ficam horas na capela deixando-se inebriar pelo Mistério. Hoje, muitos praticam meditação em busca de silêncio. Querem mergulhar no próprio poço e beber da fonte de água viva.
As novas gerações já não aprendem a fechar os olhos para ver melhor. Sabem pouco das grandes tradições espirituais; curvam-se sem reverência; ajoelham-se sem orar; meditam sem contemplar; ignoram que a solidão é um exercício de solidariedade. Não escutam o Mistério, nem auscultam o Invisível. São cada vez mais raros os jovens que fazem a experiência de deixar Deus falar neles, assim como o amado desfruta da presença invisível e, no entanto, envolvente, da amada.
O silêncio é a matéria-prima do amor, ensinava José Carlos de Oliveira, um dos melhores cronistas da história deste país. Mas quem haverá de se lembrar dele se nem somos capazes de cultivar a vida interior?
Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor do romance “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre mais de 68 livros. Ele acumula décadas de trabalho social, procurando genuinamente contribuir para melhorar a vida do próximo.