Para suportar a quarentena

“Só há uma questão verdadeiramente filosófica” – diz Kirilov, personagem de Dostoievski – “a existência de Deus. Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Paulo, o apóstolo, preferiu sobrepor o amor à fé. “Ainda que eu tivesse a fé capaz de transportar montanhas, mas não tivesse o amor, seria como o bronze que soa e isso de nada me adiantaria” (I Coríntios 13). Quatro séculos mais tarde, santo Agostinho resumiria o hino paulino numa proposta: “Ama e faze o que quiser”.

Deus inquieta-nos. Não é fácil ignorá-lo. Prova disso é que não se restringem à mera indiferença aqueles que o negam; constituem-se num movimento de rejeição militante: o ateísmo.

Muito contribuíram para suscitar o interesse por Deus os manuais soviéticos que pregavam o ateísmo, disse-me em Moscou um teólogo da Igreja Ortodoxa Russa. A insistência em negá-lo despertava em crianças e jovens o apetite pelo “fruto proibido”.

Deus era conatural às civilizações da Antiguidade. A antropologia desconhece casos de tribos atéias. O que levou Comte a acreditar, induzido por uma lógica mecanicista, que a religião era um estágio primitivo de cultura e a ciência, o ápice.

Três séculos antes, Descartes admitira sua finitude frente à infinitude divina: como seres imperfeitos como nós podem trazer na mente a ideia de um ser perfeito? Bafejado por Aristóteles, Tomás de Aquino, no século XIII, cedeu à tentação de querer provar a existência divina pela via racional.

Um deus que precisa ser provado não merece ser Deus. Banhar-se nas águas do rio é muito diferente do que conhecer fórmula e propriedades químicas da água. Outrora, os deuses promoviam a coesão dos povos. O céu estava povoado por inúmeros deles. Até que um casal de sem-terra do atual Iraque, Abraão e Sara, tomou o rumo do Egito, em busca de melhores condições de vida. Ao passar pelo monte Moriá, na atual Jerusalém, recebeu a revelação de Javé, o Deus único.

Jesus fez Deus descer de sua solidão celestial e habitar o humano. “E o Verbo se fez carne”. Fundiram-se, então, o céu e a terra, o divino e o humano. O Senhor dos Exércitos, cujo nome era impronunciável pelos hebreus, revelou-se, em Jesus, como Abba, o Pai amoroso que “cobre de beijos” o filho pródigo.

Essa avassaladora paixão do Criador por suas criaturas assusta aqueles que pretendem ser seus únicos porta-vozes. Daí a tendência de as religiões aprisionarem Deus na figura de um irado inquisidor, burocratizando o amor divino e congelando-o em doutrinas maniqueístas, nas quais o castigo predomina sobre o perdão e a disciplina sobre a liberdade.

No século XX, o clamor de duas grandes guerras encheu céus e corações humanos de silêncio de Deus. Motivados pelo racionalismo, Marx e Freud já haviam concordado que a ideia de Deus é uma inversão compensatória de nossas incompletudes. Só não se deram conta de que a razão é a imperfeição da inteligência.

Deus, no entanto, mostra-se agora mais vivo do que nunca. Como predisse Rimbaud, há uma “gula de Deus”, da expansão de novas Igrejas ao esoterismo, do gnosticismo acadêmico aos movimentos pentecostais. É o ateísmo que se encontra em crise. Quando muito, o cético diz-se agnóstico.

Enquanto isso, Deus – que não tem religião – desborda dos canônes institucionais, burla a vigilância eclesiástica e ocupa, com o seu toque sutil, o coração dos pobres e também de físicos, intelectuais e artistas renomados. Eles sabem, como diria Tomás de Aquino, que são habitados por um Outro que não é eles e, no entanto, restaura-lhes a verdadeira identidade. A fé, aliás, é um dom da inteligência.

Mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos, como afirmou Agostinho, Deus é, de fato, a questão axial da existência humana. Tudo mais são contingências. Mas, para acolhê-lo, é preciso dobrar os joelhos e deixar-se habitar por seu Espírito amoroso.

Como mero objeto de fé, Deus não passa de mito se, em nossas vidas, não se traduz em amor que liberta, segundo os novos mandamentos descritos no Sermão da Montanha. E, para nós cristãos, o centro da revelação divina é Jesus, com quem Dostoievski, se instado a escolher, preferiria ficar a ficar com a verdade.

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade” (Rocco), entre mais de 68 livros.