Para suportar a quarentena

A privatização da moral é uma característica típica das sociedades juridicamente repressivas e economicamente liberais. O cidadão não tem o direito de fugir ao padrão ético predomi­nante nas relações sociais reguladas e regulamentadas. Entre­tanto, essa mesma sociedade lhe oferece toda sorte de imoralidades na forma de prostituição organizada, propaganda sensual, espetáculos oníricos e literatura pornográfica. Tudo isso é per­mitido e juridicamente regulamentado pela mesma ordem social que defende a preservação da família monogâmica e reprime a delinquência juvenil. Dessa indústria da luxúria qualquer um pode usufruir, desde que consiga preservar o anonimato.

Há nisso uma aparente contradição, logo anulada se considerarmos que, jurídica e economicamente, essa ordem social tem um só objetivo: a acumulação de capital em mãos da minoria. Se não houvesse repressão individual, todos poderiam satisfazer seus apetites como quisessem e onde bem entendessem. A indústria da luxúria iria à falência. Mas quanto maior o puritanismo, como na tradição anglossaxônica, tanto mais rendosa é essa indústria, capaz de oferecer milhares de empregos e subempregos e incentivar o turismo. Na lei da oferta e da procura, o que se encontra com maior dificuldade pode ser oferecido por um preço maior.

Por outro lado, a imoralidade vigente tem a função de encobrir a raiz do pecado social estruturado nos próprios meca­nismos de produção e consumo dessa sociedade baseada na divisão de classes sociais, na apropriação da mais‑valia produ­zida pelo trabalho, na concorrência e no lucro. A supressão dessa raiz, que produz a marginalidade, e de seus frutos mais notó­rios, como a prostituição, implicaria a declaração de falência dessa mesma sociedade, o que não interessa àqueles que detêm em suas mãos as instituições jurídicas e a engrenagem econô­mica que asseguram a sua posição privilegiada.

Essa privatização da moral, resultante da ideologia bur­guesa, contribui para camuflar as verdadeiras causas do pecado social. Cria‑se uma contradição entre a moral que individual­mente as pessoas praticam e a moral que socialmente elas aceitam. A dona de casa não é capaz de espancar a empregada doméstica que deixou cair a louça. Seria um retrocesso à escravidão. No entanto, é capaz de pagar o menos possível para poder contar com essa empregada trabalhando o mais possível. O religioso não se armaria de um cabo de vassoura para expul­sar o pobre que bate à sua porta. Seria uma escandalosa negação de todos os seus bons propósitos. Entretanto, sua congregação é capaz de manter uma escola que não propicia instrução senão aos mais abastados e, em suas comunidades, são os mais ricos, e não os trabalhadores, que se sentem à vontade. Essa flagrante contradição é reduzida, tanto na cons­ciência da dona de casa quanto na do religioso, pelo consenso ideológico vigente de que o social escapa à responsabilidade pessoal de quem não participa diretamente do poder.

A ambiguidade moral permite a certos cristãos adotarem uma moral de intenção desvinculada da prática moral. Para estes, alguém é tido como “bom” e “justo” não por viver de fato descomprometido com a injustiça, mas sim por revelar, na polidez de suas palavras, estar dotado de “boas intenções”. Essa moral alimenta, na pessoa, a flagrante contradição entre esfera de vida subjetiva e sua esfera objetiva. Uma coisa é aquilo que ela pensa; outra, o que faz. O que ela diz não corres­ponde objetivamente ao modo como vive.

Na prática, esse tipo de cristão pode ser tão injusto e opressor quanto outros homens e desfrutar dos mesmos cargos, usufruir dos mesmos privilégios, adotar os mesmos costumes ‑ desde que seja diferente deles nas intenções…

A “caridade” decorrente dessa ambiguidade moral per­tence sobretudo à esfera dos sentimentos. É um “querer bem” aos outros que nada tem a ver com as estruturas e as relações sociais marcadas pela iniquidade. Uma “caridade” polidamente educada, socialmente conveniente, farisaicamente encobridora de um egoísmo ferrenho. Nada é feito além do estreito círculo das relações interpessoais. Aquele que “quer bem” ao outro, interessa‑se por ele enquanto não se sente desafiado ou ameaçado. Quando amar mais o próximo começa a exigir, de fato, amar menos a si mesmo e arriscar‑se pelo outro, então encontra‑se logo uma maneira de justificar essa mesma postura omissa que tiveram o sacerdote e o levita na parábola do Bom Samaritano (Lucas 10, 25‑37).

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre mais de 68 livros.