Para suportar a quarentena

Em uma cultura tão machista quanto a nossa, convém ressaltar as mulheres presentes na vida de Jesus e os desafios de sua postura para nós, hoje. O evangelista Mateus aponta, na árvore genealógica de Jesus, cinco mulheres: Tamar, Raab, Rute e Maria; e, de modo implícito, a mãe de Salomão, “que foi mulher de Urias”. Não é bem uma ascendência da qual um de nós haveria de se orgulhar.

Viúva, Tamar se disfarçou de prostituta para seduzir o sogro e gerar um filho do mesmo sangue de seu falecido marido. Raab era prostituta em Jericó, onde favoreceu a tomada da cidade pelos israelitas. Rute, bisavó de Davi, era moabita, ou seja, pagã aos olhos dos hebreus. A “que foi mulher de Urias”, Betsabeia, foi seduzida por Davi enquanto o marido dela guerreava. E Maria era a mãe de Jesus, que também não escapou das suspeitas alheias, pois apareceu grávida antes mesmo de se casar com José.

Como se nota, Deus entra na história humana pela porta dos fundos.

Em sua atividade pública, Jesus se fez acompanhar pelos Doze e por algumas mulheres: Maria Madalena; Joana, mulher de Cuza, o procurador de Herodes; Susana e várias outras. Portanto, o grupo de discípulos de Jesus não era propriamente machista. Além disso, Jesus frequentava, em Betânia, a casa de suas amigas Marta e Maria, irmãs de Lázaro.

Os evangelhos registram vários encontros de Jesus com mulheres. O mais intrigante deles é o seu diálogo com a samaritana à beira do poço de Jacó. Jesus sabia que ela já havia tido seis maridos. Nem por isso fez-lhe um sermão sobre a fidelidade matrimonial ou as penas reservadas no inferno a quem se entrega à rotatividade conjugal. Jesus viu mais fundo. Percebeu que a samaritana buscava, sedenta, o amor em espírito e verdade. Por isso, concedeu-lhe a graça de ser a primeira pessoa a quem se revelou como Messias. Só Deus, que é amor, seria capaz de saciar aquele coração peregrino.

O primeiro milagre de Jesus foi para atender ao pedido de uma mulher, Maria, sua mãe, preocupada com a falta de vinho numa festa de casamento em Caná. Como diria Aldir Blanc, “o show tem que continuar”.

Jesus curou várias mulheres, como a aleijada da sinagoga; a filha de Jairo; a que, há doze anos, sofria de hemorragia; a filha da cananeia que deu testemunho de profunda fé etc. Jesus curou também a sogra de Pedro.

Portanto, Pedro, escolhido por Jesus para ser o primeiro papa, era casado, o que tira a força do argumento de quem defende, por razões bíblicas, o celibato obrigatório e o impedimento de acesso de mulheres ao sacerdócio e ao episcopado. E nem se pode alegar que, ao seguir Jesus, Pedro teria abandonado para sempre sua mulher, uma vez que a cura da sogra denuncia o retorno dele e de Jesus à casa da família, em Cafarnaum.

Certa ocasião, Jesus tinha ido comer em casa de um fariseu. Entrou uma mulher “da cidade, uma pecadora”, ajoelhou-se a seus pés e, chorando, começou a beijá-los, ungi-los com perfume e enxugá-los com os cabelos. O anfitrião, escandalizado, ficou em dúvida quanto a Jesus. Este, porém, o desmascarou, ao sublinhar que, ao contrário dele, “ela demonstrou muito amor”.

A primeira testemunha da ressurreição de Jesus foi uma mulher, Maria Madalena.

O modo de Jesus tratar as mulheres nem sempre coincide com o da Igreja Católica, onde elas são impedidas de acesso ao sacerdócio. Desconfio de que certos clérigos têm, da mulher, uma visão pornográfica. O mais preocupante, porém, é ainda a Igreja considerar, no casamento, a procriação como objetivo superior à comunhão de amor. As pessoas não se unem para ter filhos, mas por amor. Fosse o contrário, deveria ser considerado nulo o matrimônio de um casal estéril.

O que se pode esperar de filhos cujos pais não se amam? Não devemos nos aproximar de Deus para evitar as penas do inferno ou obter a salvação. Mas por amor, sobretudo aos nossos semelhantes – imagens vivas de Deus. Não há experiência humana tão feliz e plena quanto a do místico que vive em estado de paixão pela Trindade.

Não há um só caso nos evangelhos em que Jesus tenha repudiado uma mulher, como fez com Herodes Antipas, ou proferido maldições sobre elas, como fez com os escribas e fariseus. Com elas, mostrava-se misericordioso, acolhedor, afetuoso e exaltava-lhes a fé e o amor.

É chegada a hora de a Igreja assumir o seu lado feminino e abrir todos os seus ministérios às mulheres. Afinal, metade da humanidade é mulher. E, a outra metade, filha de mulher.

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor de “Fome de Deus” (Companhia das Letras), entre mais de 68 livros.

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