Para suportar a quarentena

Vinde comigo a um lugar deserto para descansar-mos, diz Jesus ao convidar os discípulos e despedir a multidão. Os apóstolos estão exaustos, desde manhã entregues à atenção aos doentes, ao consolo dos aflitos, às polêmicas com fariseus e saduceus. Sobem na barca e navegam para o lado de Betsaida, ­situada em região administrada por Filipe – mais interessado em cuidar de seus latifúndios que reprimir os suspeitos de ­amea­ça à pax romana.

Enquanto sulcam o lago, o povo corre pela margem para alcançá-los. Muitos chegam antes deles. Alguns têm os pés feridos pelas pedras lambidas pelo movimento das águas. Ao desembarcar, Jesus, ao ver toda aquela gente, fica tomado de compaixão.

Ao refluir a luz do sol, Filipe interrompe o diálogo de Jesus com um grupo de mulheres: Este lugar é deserto e a hora já está avançada. Despede esse povo para que possa ir aos povoados vizinhos comprar o que comer. Ora, como despedi-los? rebate Jesus com acrimônia. Então temos palavras de vida eterna e cruzamos os braços quando precisam se alimentar nesta vida? Filipe fica lívido. A ponta achatada de seu nariz, toda vermelha, destoa da palidez de seu rosto. Queremos matar a fome de Deus e enxotamos quando se pede pão? Dai-lhes vós mesmos de comer!

Judas empenha-se na defesa da bolsa comum: Iremos comprar duzentos denários de pão para toda essa gente? Vamos gastar, em poucas horas, o que ganha um agricultor em seis meses de trabalho? Jesus desdenha os argumentos do discípulo: Não me interessa quanto tendes de dinheiro. Quero saber quanto tendes de bens. Quantos pães há? Ide ver.

André avista um pastor de cabras com um cesto a tiracolo. Informa a Jesus: Há aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixinhos. Sete? surpreende-se Jesus. Então são muitos pães e bastantes ­peixes. Como assim? indaga Pedro; minha inteligência rasteja como uma cobra enquanto a tua voa como um condor. Não sabias, Simão, que sete significa infinito? Esqueces que sete foram os dias da Criação; sete os dias da semana; e que os vossos pecados serão perdoa­dos, não apenas sete, mas setenta e sete vezes? Vira-se para André e ordena: Acomoda essa gente sobre a relva verde; organiza-a em grupos de cem e cinquenta.

Jesus toma os pães e os peixes, eleva os olhos ao céu e abençoa-os. Parte os pães e entrega-os aos discípulos para que distribuam. Reparte também os ­peixes. Todos comem e ficam saciados. E ainda são recolhidos doze cestos cheios dos pedaços de pão e de ­peixes.

Um grupo ensaia uma aclamação: Jesus é o nosso rei! Morra Antipas! Abaixo Filipe!

Cauteloso, Jesus refugia-se sozinho na montanha.

O velho se faz novo

No dia seguinte, Tadeu, que não esteve presente à partilha dos pães, encontra Natanael e diz a ele: Soube que ontem o mestre fez um fantástico milagre! Fantástico milagre!? repete Natanael contrariado. Sim, amigos de Betsaida contaram-me, hoje cedo, que ele multiplicou pães e peixes para uma multidão!

Natanael irrita-se: Falaram-te em multiplicação? Essa gente enxerga camelos voadores onde só vejo pardais. Não te deste conta de que multiplicar é pres-tidigitação e que o nosso mestre não faz mágicas? Havia ali muitos pães e peixes, trazidos pelos comerciantes dos povoados vizinhos ao verem se juntar tantas pessoas. Jesus não pronunciou nenhuma palavra cabalística sobre uns poucos pães e peixes fazendo aparecer, ao lado, uma casa de pão e uma banca de peixes. Operou, sim, um milagre. Não o da multiplicação, mas o da divisão, raiz de toda justiça. Levou aquela gente a repartir entre si os pães e os peixes que trazia consigo.

Então não houve milagre? pergunta Tadeu, murchando o tom. O milagre, Tadeu, não foi multiplicar, foi dobrar o coração dos que tinham alimentos para si e se tornaram capazes de partilhá-los com os demais.

Tadeu queda pensativo. Dize-me uma coisa, Natanael: E se houvesse apenas cinco pães e dois peixes? O mestre não poderia tê-los multiplicado? Natanael suspira, desanimado: Filho de Jacó, ainda não percebeste que Jesus não faz milagres de acréscimos? Como assim? Se um dia Mateus ou João for contar a história dele, como têm prometido, jamais poderá escrever que “um homem sem a perna direita aproximou-se de Jesus. Ao vê-lo, o mestre tomou um galho, apoiou-o no dorso do enfermo e ele saiu andando com as duas pernas”. Ou que “uma mulher não tinha a mão esquerda. Jesus tomou um punhado de barro, soprou e ela recuperou a mão”. Todos os milagres têm sido de revitalização. A mão seca recobra movimentos; o fluxo de sangue cessa; o mudo desata a língua; o cego recupera a vista; o morto ressuscita.

Tadeu insiste: Aqui entre nós, Natanael, não achas que o mestre quer reprisar o profeta Eliseu? De onde tiraste essa ideia? indaga Natanael aborrecido. Conta o Segundo Livro dos Reis, lembra Tadeu, que um homem entregou a Eliseu um saco com vinte pães. Ordenou o profeta: “Distribui aos homens para que comam!” Seu ajudante replicou: “Como repartir tão pouco ­entre cem pessoas?” Eliseu repetiu a ordem. E acrescentou: “Assim fala o Senhor – ‘Comerão e ainda há de sobrar’.” O ajudante fez o que devia. Todos comeram e ainda houve sobra.

Pensativo, Natanael encerra a conversa: Acho que o mestre veio mostrar como o velho se faz novo.

Trecho do romance Um homem chamado Jesus, editora Rocco

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor de “Fome de Deus” (Companhia das Letras), entre mais de 68 livros.