Por Bárbara Schijman
Publicado no Página 12
O intelectual brasileiro fala da “hegemonia total do capital” em um mundo em pandemia
Ele chama seu presidente de Bolsonero, comparando-o com o imperador romano que entrou para a história por ter queimado Roma. Aponta a urgência da construção de um socialismo sólido e a necessidade de pensar estratégias contra a narrativa hegemônica dos setores conservadores.
Carlos Alberto Libanio Christo, mais conhecido como Frei Betto, é um reconhecido líder progressista latino-americano e uma das principais figuras da Teologia da Libertação. Escritor, jornalista e frade dominicano, passou quatro anos na prisão durante a ditadura militar brasileira, à qual se opôs de corpo e alma. Durante seu trabalho junto ao movimento popular, conheceu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de cujo governo participou do programa Fome Zero. Ele escreveu 69 livros, editados no Brasil e no exterior, entre eles, Fidel e religião; Batismo de sangue e A Mosca Azul.
Que reflexos este mundo em pandemia abre para você?
Acredito que a pandemia é uma vingança da natureza, resultado de anos de dominação e devastação por seres humanos. Absolutamente tudo o que temos feito nos últimos 200 anos, a busca do lucro e do aproveitamento máximo dos recursos da natureza sem nenhum cuidado com a preservação do meio ambiente, resulta no descontrole da cadeia da natureza, que é totalmente desarticulada pela intervenção humana. Muitos falam em “antropoceno”, ou seja, a era da intervenção total do ser humano na natureza; mas prefiro chamar essa situação de “capitaloceno”. Ou seja, a hegemonia total do capital, da busca do lucro, do lucro; tudo isso que causa um desequilíbrio total do ambiente natural.
Todo esse processo de devastação ambiental é resultado de ganhos de capital privado. O problema não é o ser humano; o problema é o capitalismo neoliberal. E devemos lembrar que a natureza pode viver sem nossa presença desconfortável; não precisamos, precisamos da natureza.
Como você analisa a situação no Brasil?
No meu país a situação é catastrófica porque temos um governo neofascista. Eu chamo o presidente Jair Bolsonaro de “Bolsonero”, cheguei até a lhe dar esse apelido antes da revista The Economist. O Brasil está em pleno fogo, na Amazônia e em outras áreas, e o presidente não tem interesse em melhorar a situação ou mudar o rumo do que estamos vivendo. Tudo o que significa morte combina com ele. Vivemos sob um governo genocida e mentiroso.
Ele é tão flagrante que em seu último discurso na ONU disse que os culpados pelos incêndios na Amazônia são camponeses, pequenos agricultores da região e indígenas. Por isso, não há dúvida de que vivemos aqui no Brasil uma situação catastrófica administrada por um governo neofascista, que usa cada vez mais fundamentalismos religiosos para se legitimar. A saúde importa tão pouco para ele quanto a educação. Bolsonaro sabe muito bem que um povo educado é um povo que tem um mínimo de consciência crítica. E então para ele é melhor que o povo não tenha educação para que possa continuar a guiar uma massa ignorante. Claro que não por causa da missa em si, mas por causa das condições educacionais que não são propriamente oferecidas ao povo. Como se tudo isso não bastasse, voltamos agora a um mapa da fome, com um número enorme de pessoas que não dispõem do mínimo necessário dos nutrientes fornecidos pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Enfim, estamos em uma situação tremenda. Veremos o que acontece nas eleições municipais de novembro.
Que cenário você imagina?
Acho que as eleições serão um termômetro interessante para avaliar a aparência do nosso povo. Mas a verdade é que, nisso, não sou muito otimista. A pandemia ajudou muito para o Bolsonaro ter a hegemonia da narrativa, porque não existem manifestações públicas, são proibidas, ou não são convenientes, então só se ouve a voz do governo.
Ao votar a favor do impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro dedicou seu voto à memória do torturador do Exército, Coronel Carlos Brilhante Ustra. Seu comportamento não deve ser surpreendente. Mas, o que explica que, mesmo assim, mantenha um piso considerável de apoio popular?
Tenho duas explicações para essa situação. Em primeiro lugar, a direita tem o domínio do sistema eletrônico das redes digitais, que prefiro não chamar de “sociais” porque não necessariamente criam sociabilidade. Acho que muita gente de esquerda, progressista, ainda não domina esse mecanismo. E também, como os donos dessas plataformas são favoráveis a setores próximos ao governo, muitos usam algoritmos e outros dispositivos para divulgar notícias falsas. E todo tipo de mentira Isso é muito poderoso porque hoje as pessoas descobrem muito mais sobre notícias e eventos por meio das redes digitais do que pela mídia tradicional. Este é um primeiro fator. O segundo fator está relacionado à mobilização dos mais pobres pelas igrejas evangélicas conservadoras. E depois há pessoas que abdicaram de sua liberdade para buscar segurança. Essa é a proposta do direito mundial: que cada pessoa abdique de sua liberdade em troca de sua segurança.
Diante deste último, e da narrativa hegemônica que ele descreve, o que dizer das vozes de esquerda?
Sobre isso nós, aqueles de nós que se sentem de esquerda, temos uma certa responsabilidade porque abandonamos o trabalho de base. Abandonamos o trabalho ao lado das pessoas mais pobres deste país. Nos treze anos que estamos no governo, não aumentamos esse trabalho de base, e esse espaço tem sido ocupado por essas igrejas evangélicas e alguns setores católicos fundamentalistas conservadores. Essas igrejas já percorreram um longo caminho. E isso também tem a ver com um projeto de inteligência dos EUA desde os anos 1970. Em duas conferências realizadas no México, a CIA e o Departamento de Estado já afirmaram que a Teologia da Libertação era mais perigosa que o marxismo na América Latina e que então toda uma contra-ofensiva deveria ser realizada. Essa contra-ofensiva vem de mãos dadas com o surgimento dessas igrejas eletrônicas que foram exportadas para a América Latina, África, Ásia e outros lugares.
A religião é o primeiro sistema de significado inventado pelo homem. Não há outro sentido mais poderoso e globalizante do que a religião. É por isso que há tantos que hoje buscam o domínio desse sistema. E nós, que somos progressistas na Teologia da Libertação, temos feito um trabalho de base intenso e muito positivo aqui no Brasil entre os anos 1970 durante a ditadura militar e também nos anos 1990, mas depois vieram dois próprios pontificados. conservadores, os de João Paulo II e Bento XVI. Foram 34 anos de desmobilização daquela igreja de base, daquela igreja das comunidades eclesiais de base; foram 34 anos de danos à Teologia da Libertação. Tudo isso abriu espaço para essa contra-ofensiva da direita evangélica.
Afirma que “não há futuro para a humanidade fora do socialismo”. Como o socialismo é construído nesta conjuntura?
Não espere que o capitalismo acabe para construir o socialismo. Temos que construir o socialismo dentro do sistema capitalista, ou seja, iniciar iniciativas populares de economia solidária, de partilha de bens, de fortalecimento de bases populares. É aí que começa, não há outra maneira. Não podemos voltar à concepção leninista do assalto ao Palácio de Inverno. Temos que denunciar o sistema capitalista, mas criar alternativas eficazes para este sistema, o mais longe possível da base. Dessa forma, acho que podemos quebrar esse sistema no longo prazo, mas devemos ter iniciativa e pressão e forças políticas. É um trabalho de longo prazo, essencial, e não vejo outra saída além disso na atual conjuntura.
Que exemplos dessas iniciativas você afirma?
Existem muitas iniciativas de setores populares em diferentes lugares. No Brasil, o Movimento Sem Terra tem iniciativas tipicamente socialistas. Recentemente, com a tremenda alta do preço do arroz no Brasil, o MST, que é grande produtor de arroz, não aumentou os preços e fez uma péssima venda. Muitas pessoas puderam descobrir as vantagens da agricultura familiar, onde os serviços e os lucros são repartidos entre famílias assentadas ou acampadas. Existem pequenas iniciativas que temos que fortalecer, e buscar espaços nos governos novamente, porque a possibilidade de trabalhar a partir do governo é muito importante e imensa, como fizemos durante as presidências de Lula e Dilma.
Infelizmente, não aproveitamos todas as possibilidades e, sobretudo, não fizemos um trabalho, para mim fundamental, que tenha a ver com a alfabetização política do povo. Muito mais deveria ter sido investido nisso. Se tivermos outra chance de voltar ao governo, teremos que enfrentar esse trabalho, que é fundamental. Se, por um lado, os treze anos de governo do Partido dos Trabalhadores promoveram muitos avanços sociais no Brasil – eles são os melhores de nossa história republicana -, por outro, não trabalhamos na alfabetização política do povo, no fortalecimento dos movimentos populares, e a democratização dos meios de comunicação.
Há quem defenda que o capitalismo deve ser humanizado. Isso é possível?
É uma ideia totalmente contraditória. Humanizar o capitalismo é o mesmo que arrancar os dentes do tigre, pensando que assim será tirada a sua agressividade; É uma ingenuidade total querer humanizar o capitalismo. Não há possibilidade disso; o capitalismo é inerentemente ruim. Seu próprio mecanismo endógeno é um mecanismo necrofílico. É um sistema que se alimenta do trabalhador, do consumidor, dos pobres. É uma questão aritmética: se não há tanta riqueza, não há tanta pobreza; se não há tanta pobreza, não há tanta riqueza. É impossível humanizar o capitalismo; É uma postulação muito ingênua e infelizmente ainda existem pessoas que acreditam neste mito.
Como é gerada a consciência democrática? Como trabalhar a democratização da sociedade em tempos como os de hoje?
Através de sistemas de comunicação – digital, impresso, audiovisual, etc.-, traduzindo para a linguagem popular muitos dos conceitos divulgados nos meios de comunicação de massa. Pessoas simples muitas vezes não entendem conceitos como dívida pública, investimentos estrangeiros, flutuação da taxa de câmbio, equipamentos de mercado. Isso exige metodologia – que Paulo Freire ensina – e equipes de educação popular.
Você imagina o Lula como presidente do Brasil novamente?
Talvez você tenha a oportunidade porque estão revendo seus julgamentos e sentenças, cheios de tantos preconceitos. Espero ter a chance de ser candidato novamente; é nossa esperança aqui.
Você imagina uma Igreja Católica menos conservadora, de fato atenta às proclamações que defende?
Como eu disse, a Igreja Católica passou 34 anos de pontificados conservadores que desmobilizaram em grande parte toda aquela obra popular das comunidades eclesiais de base, matéria-prima da Teologia da Libertação. Isso não vem da cabeça dos teólogos, vem das bases. Tudo isso foi desmobilizado. Podem ser tempos diferentes das mudanças que o Papa Francisco propõe, mas ainda assim a hierarquia intermediária entre as bases e as pessoas que detêm o poder na igreja não mudou totalmente. Ainda temos um grande número de bispos e padres muito conservadores e que não querem se engajar nas lutas populares, têm medo ou buscam seu conforto, seu conforto e não querem se colocar em risco. Há todo um trabalho a fazer Mas há setores da Igreja Católica e da América Latina que estão muito comprometidos com essas lutas pela defesa dos direitos dos mais pobres, dos direitos humanos; isso é muito forte em muitos setores.
Como você pensa sobre o futuro imediato?
Acho que no futuro imediato haverá uma exacerbação do individualismo. A pandemia exigiu o corte de relacionamentos face a face, então as pessoas vão ficar cada vez mais isoladas, com menos oportunidades de se relacionar e se reunir nas ruas, nos sindicatos, nos movimentos sociais, pelo menos até a vacina venha nos tirar dessa situação. E aqui reaparece a importância de saber lidar com redes digitais. Nós, a esquerda progressista, temos que aprender mais e mais como gerenciar essas redes e mudá-las, porque sabemos que muitos deles estão ali apenas para favorecer o consumo ou mesmo vinculados a serviços de espionagem, inteligência e controle de pessoas. Há muito o que lutar em torno disso, porque é um fator que veio para ficar. Muitas pessoas são informadas por meio dessas redes digitais. Temos que criar grupos com capacidade de dominar essas redes, negar notícias falsas e divulgar a verdade, os fatos reais. Esta é a única maneira de realizar um trabalho virtual de educação política.
Existe Teologia da Libertação hoje?
Sim, claro. A Teologia da Libertação abriu seu campo para outras questões que não são apenas lutas sociais, ela também aborda a questão da ecologia, questões da nanotecnologia, astrofísica, cosmologia, bioética. O problema é que perdemos muito das bases populares que estavam na base da Teoria da Libertação. Essas bases foram perdidas durante esses 34 anos de pontificados conservadores. Nossa tarefa principal é voltar às bases, voltar às aldeias, voltar às favelas, às periferias, voltar aos pobres, aos oprimidos, aos excluídos, como os negros, os indígenas, os LGBT. Todos nós temos que estar nesta luta; é aí que temos que caminhar.
Você está otimista?
Eu tenho um princípio: você tem que guardar o pessimismo para dias melhores. Não podemos jogar o jogo de um sistema que está procurando que permaneçamos calados, deprimidos, desanimados; Temos que continuar lutando. A história tem muitas reviravoltas. Já passei por muita coisa, algumas muito tremendas, algumas positivas. A prisão na ditadura militar, a força dos movimentos populares, a eleição de Lula, a eleição de Dilma… Estou otimista, sim. Não podemos considerar nenhum momento histórico como definitivo.