Frei Betto: Aldeia do Silêncio. Rio de Janeiro, Rocco, 2013. – Paula Cajaty (publicado no jornal literário RASCUNHO 170, Junho 2014)
O romance “Aldeia do silêncio” de Frei Betto é ambicioso. Digno dos grandes pensadores-teólogos que escreveram sobre moral, ética e filosofia, como Tomás de Aquino e Santo Agostinho, Betto conta a história de Nemo (em latim, ninguém), um homem que passou a vida em uma aldeia longínqua e esquecida do mundo ao lado de seu avô, sua mãe, um cachorro e um urubu. É durante sua internação em um hospital – durante 17 anos, até morrer – que ele aprende a escrever, e resolve contar a sua vida passada na aldeia, em contraste com o que vê no mundo urbano.
Sim, é bem verdade que há necessidade de se abstrair a questão narrativa. A proposição da origem do personagem principal é um tanto questionável: o refinamento de seu pensamento filosófico e da articulação narrativa não condizem com sua origem rude. E, mais ainda, se é verdade que o protagonista busca o silêncio, inclusive o interior, não é isso o que vemos na intensa articulação de palavras em pensamento.
Mas isso é um detalhe menor ante a magnitude da obra. Se o mote do livro é discutível, não o é o seu conteúdo. Frei Betto alça voo com as palavras, em reflexões preciosas, poéticas, necessárias e precisas. Seu Nemo é apenas um canal para dar voz a profundas questões filosóficas, éticas e existenciais, atualizadas com o mundo pós-smartphones, pós-facebook e pós-whatsup.
Aliás, o próprio Frei Betto, em bate-papo com Claudiney Ferreira (Itaú Cultural) revelou que a origem do livro foi exatamente essa: ao observar cinco jovens em uma mesa, cada um com seu celular, em silêncio, começou a refletir sobre os tempos atuais e a própria relação do homem com o tempo. Após cinquenta e seis (56) obras publicadas, traduzidas para 24 idiomas, além de participações em antologias, coletâneas – exibindo uma obra já magnífica – duas vezes ganhador do Prêmio Jabuti, Frei Betto ainda guarda a capacidade de observação e crítica, com olhos renovados, do futuro que espreita à sua volta.
Frei Betto nota com propriedade essa mudança no comportamento humano e nos alerta: na sociedade do espetáculo, perdemos o senso entre o privado e o público, e também entre o interior e o exterior. Em lugares públicos, nos refugiamos na tela de celulares; em um elevador, zapeamos no celular para evitar o constrangimento de cumprimentar desconhecidos. Em lugares privados, gravamos vídeos e os compartilhamos para o mundo inteiro e logo um almoço familiar se torna digno de publicações com fotos de comida, e um simples passeio na praia de dois namorados pode se tornar um ensaio fotográfico pré-núpcias.
O convite de Nemo é caminhar exatamente na via oposta: “Agora sei, fora da aldeia, o quanto as pessoas são movidas pela ânsia de fazer, fazer, fazer. Lá, o melhor fazer era não fazer nada. Deixar-se estar, apenas ser. Ênstase – livre das sutilezas da mente e dos fantasmas do espírito. Mergulho no vácuo interior. (…) O silêncio é todo ele feito de nuanças. Não há uma única forma de silêncio. Há múltiplas.”
O convite de Frei Betto é refletir sobre tudo o que escrevemos e falamos, hoje mais do que nunca, e em inúmeras instâncias: “Posso apagar o que escrevo. O que falo, jamais. Falar é como derramar café sobre o lençol. Não há como anular o incidente. A palavra proferida incide irreversivelmente sobre a realidade. Impossível silenciar o que foi dito. Posso tentar corrigir, mudar de opinião, desdizer-me. Mas para isso terei de utilizar mais palavras (…)”. Mais do que nunca, hoje somos prisioneiros das palavras ditas em redes sociais, em entrevistas que não se deixam esquecer. Tal, é, aliás, a nova vertente que surge no direito pós-midiático: o direito ao esquecimento, direito de todos nós de que seja esquecido (pela mídia, pelas redes sociais) algo que tenha sido dito ou feito, ainda que um fato verídico. Até criminosos possuem direito de que seus crimes não tenham mais efeito, enquanto usuários do Facebook não se dão conta de que têm sua vida inteira catalogada e analisada, eternamente.
Voltando ao romance, que tece a própria filosofia do silêncio, Frei Betto traz a riqueza de Guimarães Rosa, com a criação de palavras novas, e a delicadeza de Mario Quintana, na descrição inocente da beleza que reside nas pequenas coisas. Evoca também Manoel de Barros, com sua capacidade de observar a natureza como criança e exaltar o bucolismo como modo de se resgatar uma humanidade que se perde cada vez mais no cimento das cidades. São tantas as alusões a cânones da literatura brasileira, que a cada parágrafo entrevemos Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, João Cabral de Mello Neto, em um texto exímio e coeso, forte e pungente.
Frei Betto ainda dialoga com livros que impõe um isolamento para um encontro metafísico, como “A Cabana”, seguindo o movimento do protagonista que, em um local ermo e longínquo cercado de paz e silêncio, tem a oportunidade de encontrar-se consigo mesmo, com suas emoções, e com a divindade suprema. Em sua Aldeia, Nemo podia ouvir a Deus nos extremos do silêncio interior e nos pequenos ruídos da natureza.
Para quem tem o hábito de ler livros sublinhando as melhores frases, é melhor esquecer a lapiseira. “Aldeia do silêncio” é um livro em que todas as frases são iluminadas: dispensam o destaque de sublinhados, marcações, comentários e hidrocores. São poucos e mágicos os livros em que isso acontece. É possível, por vezes, ao se voltar à leitura, ter vontade de caminhar algumas folhas para trás, apenas para entrar de novo na aura poética da narrativa. As figuras de linguagem são sempre cabíveis e bem colocadas, sem exageros, sem lugares comuns, sem repetições cansadas de frases batidas.
A obra é rica em pérolas filosóficas: “A aldeia não era propriamente um lugar; era uma ferida aberta no dorso da Terra.”; “O vento penteia as árvores na primavera para descabelá-las no outono.”; “A vida é feita mais de perguntas que de respostas.”; “A realidade é filha da fantasia.”; “Não se pode renegar o que se foi. Esta é uma lei absoluta, lei que marca a nossa existência.”; “A boca trai coração; os olhos jamais.”; “A palavra é dia; o silêncio, noite.”; entre tantas e inúmeras outras. Encontrar a “Aldeia do silêncio” é como voltar ao Éden, ou a uma espécie de Eldorado literário. Muito embora não possamos permanecer nesses lugares idílicos para sempre, eles de certa forma nos transformam e assim se tornam, eternamente, parte de nós.
Trecho do livro
“Foi ali, imóvel sobre a pedra, que me veio a revelação. Não veio de cima, dos céus, do além. Veio do mais profundo de mim mesmo, dos bastidores de meu íntimo, de lá onde a mente não alcança, a imaginação não concebe, as palavras não traduzem. Fez-se silêncio em meu entendimento, a memória serenou, a imaginação refluiu, a vontade aquietou.
Senti-me inundado pelo paradoxo – emaranhado de paralelas que se encontram no infinito. Soava em mim uma música silenciosa. Descobri que o tudo é o nada, o escuro é o claro, o eu é o outro, o vazio é o pleno, e a dor é o amor. Operou-se em meu ser a síntese. Puro dom.”