O que mobiliza multidões? A resposta está no sionismo do governo de Israel. Está também nos fundamentalismos cristão e muçulmano. O que mobiliza multidões são narrativas religiosas que imprimem sentido à vida e, inclusive, à pós-vida.
Os judeus sionistas estão convencidos de que são o povo eleito por Deus, preferidos a todos os outros povos, e que a Palestina é territorialmente a área reservada a eles pela promessa de Javé de que haveriam de habitar a Terra Prometida onde “corre o leite e o mel” (embora ali corra mais vinho e azeite). Do mesmo modo, os católicos pré-Vaticano II estavam convencidos de que “fora da Igreja não há salvação”.
Nas páginas revestidas de sacralidade da Torá, da Bíblia e do Alcorão, sucessivas gerações encontraram um sentido pelo qual vale a pena viver… e até mesmo morrer. Vide o panteão de mártires cristãos e de santos e santas que teriam seguido à risca a vontade divina e, por isso, merecem ser elevados aos altares, aglomerar devotos, suscitar efemérides e erguer santuários alvos de incessantes peregrinações.
Por mais que o sistema capitalista tente nos incutir a mercadoria como valor supremo, as narrativas religiosas, com suas abordagens mistéricas, transcendentes, miraculosas e enigmáticas, conseguem suscitar devotos que trocam o conforto de suas famílias ricas pela vida sacrificada de padres e pastores inseridos no meio dos pobres. Induziram o multimilionário Bin Laden a abandonar o luxo de sua família saudita por uma existência arriscada nas sendas do terrorismo. Convencem um governo teocrático, como o de Israel (que não possui Constituição), de que os palestinos devem ser expulsos a ferro e fogo das terras de seus ancestrais cananeus.
É esta apropriação do sentido que empodera, hoje, as Igrejas pentecostais e neopentecostais, e tornam muitas delas surdas à teologia de amplitude social da Teologia da Libertação. Enquanto as Comunidades Eclesiais de Base leem a Bíblia como proposta de transformação da sociedade, as Igrejas evangélicas, com raras exceções, o fazem como uma proposta de mudança pessoal (metanoia). Não há que combater o opressor, e sim o diabo. Se alguém acumula fortuna é porque Deus o abençoou por ter sabido evitar vícios como fumo, bebida e prostituição e, assim, galgar os degraus da meritocracia.
Se a esquerda e os setores progressistas pretendem, hoje, conquistar adeptos e neutralizar os avanços da direita, não vejo outro caminho senão ganhar a guerra das narrativas, como ocorreu em décadas passadas. Desenvolver o pensamento crítico através da arte, da academia, dos veículos de comunicação, como as redes digitais e, sobretudo, do trabalho de base no meio popular, me parece ser a tarefa prioritária na atual conjuntura. Promover educação política segundo a pedagogia e a metodologia de Paulo Freire se impõe como desafio urgente.
Políticas sociais angariam votos dos beneficiários, mas não mudam necessariamente consciências e atitudes. Isso só se consegue quando se abraça um novo sistema de sentido, como as narrativas historicamente produzidas pelo marxismo e pela Teologia da Libertação. Investir em educação popular deveria ser, inclusive, prioridade de governo.
Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.