(Em homenagem ao Dia da Consciência Negra, 20 de novembro)
Trago África no sangue. O reboar de tambores, a ponta afiada de lanças, os riscos coloridos realçando a pele e, na boca, o gosto atávico dos frutos do Jardim do Éden. Na alma, cicatrizes abertas de tantos açoites, o grito imperial dos caçadores de gente, filhos apartados de seus pais e, maridos, de suas mulheres, o balanço agônico da travessia do Atlântico e, nos porões, a morte ceifando corpos engolidos pelo mar e triturados pelos dentes afiados dos peixes.
Sou filho de Ogum e Oxalá, devoto de Iemanjá, a quem elevo oferendas de todas as dores e cores, lágrimas e sabores, o choro inconsolável das senzalas, a carne lanhada de cordas, pulsos e tornozelos a ferros, a solidão da raça, o ventre rasgado e engravidado pela feroz pulsão dos senhores da Casa Grande.
Restam-me, na cuia de madeira, sobras do suíno descarnado e, enquanto a mesa colonial saboreia o lombo, rasgo peles e orelhas, refogo em banha o feijão, fatio em paio as carnes, frito linguiças e torresmos, apimento e condimento, e me empanturro. No alambique, colho a seiva ardente da cana que me transporta aos ancestrais, às savanas e florestas, ao tempo de imensurável liberdade.
Nas noites de Casa Grande vazia e capatazes bêbados, enfeito o meu corpo de tinturas e, espelhado no reflexo da Lua, adorno braços e pernas, cubro-me de colares e braçadeiras e, ao som inebriante do batuque, danço, danço, danço, e exorcizo tristezas, esconjuro maus espíritos, imprimo ao movimento de todos os membros o impulso irrefreável do voo do espírito.
Sou escravo e, no entanto, senhor de mim mesmo. Não há ferrolho que me tranque a consciência nem moralismo que me faça encarar o corpo com olhos da vergonha. Faço do sexo festa; do carinho, liturgia; do amor, bonança; e multiplico a raça na esperança de quem fertiliza sementes. Dou ao senhor novos braços que haverão de derrubá-lo de seu trono.
Comungo a exuberância da natureza, faço das copas das árvores meus templos, e do fogão de lenha trago ofertas. Em meu ser trafegam, céleres, cavalos alados, e sigo o mapa traçado pelos búzios que me ensinam: não há dor que sempre dura, mas o verdadeiro amor perdura. Tão povoado é o céu de minhas crenças que não rejeito nem mesmo a santeria do clero. Antes, reverencio o cavalo de São Jorge, transfiro aos altares a devoção aos meus orixás, lanço ao rio a Virgem negra na fé de que, entre tantas brancas, incensadas no andor do senhor de escravos, chegará o tempo em que a minha será Aparecida e, a seus pés, também os joelhos dos brancos haverão de se dobrar.
Sou liberto e, no fundo das matas, recrio um espaço de liberdade e defendendo, com espírito guerreiro, meu reduto de paz. No quilombo, volto à África, resgato a força mistérica de meu idioma, celebro reisados e congadas, e o canto livre ecoa no coro da passarada. As águas da cachoeira expurgam-me de todo temor, pois sou protegido por árvores sentinelas cobertas de mil olhos vigilantes.
Cidadão brasileiro, ainda luto por alforria, empenhado em abolir preconceitos e discriminações, grilhões forjados na inconsciência e inconsistência dos que insistem em fazer da diferença divergência, e ignoram que Deus é negro.
Frei Betto é escritor, autor de “Minas do ouro” (Rocco), romance que retrata a escravidão em Minas Gerais, entre outros livros.