O Carnaval foi, em tempos idos, uma festa religiosa. Como revela sua etimologia, era (e ainda é, em outro sentido) o “festival da carne”. No tríduo que antecede a Quaresma, os cristãos fartavam-se de carnes. Após a Quarta-Feira de Cinzas, passavam 40 dias em abstinência, não só de bifes e chouriços, mas também de relações sexuais.

Com o tempo, o Carnaval transmutou-se em folguedo profano. Festa em que se brinca invertendo papéis pessoais e sociais. O rosto coberto com a máscara do diabo ou do político, o homem vestido de mulher e a mulher em trajes masculinos, o rico à rua em farrapos, o pobre em trajes imperiais.

Outrora, uma festa sadia, na qual todos participavam. Em cada cidade do Brasil, blocos, cordões, bailes, desfiles e carros alegóricos. Em avenidas e praças, adultos e crianças mesclavam-se na alegria. Ninguém saía à rua atento à bolsa ou à carteira. Pulava-se Carnaval sem drogas e violências, embora houvesse quem exagerasse na bebida e cheirasse lança-perfume.

Mudou o Brasil, mudamos nós. O Carnaval adquiriu, então, o caráter de folia – do francês “folie”, loucura. A sobrevivência difícil reduziu o nosso espaço de lazer e o império da TV, o nosso tempo. A festa de Momo restou como momento de catarse. Alguns buscam o prazer imediato no sexo e na droga; outros, a transgressão de valores na nudez e na irreverência agressivas. Nos desfiles das escolas de samba, títulos, promoções e prêmios.

Hoje, o Carnaval é um feriadão. Escravizados pelos ícones eletrônicos, muitos deixam de participar para ficar como meros (tele)espectadores. Despem a fantasia do corpo para confiná-la na mente. Eis a globalização do voyeurismo. Refestelados na poltrona, veem a passista volatilizar-se no carrossel de imagens. Ficam reduzidos à condição de fregueses de um açougue virtual, cujas postas são pedaços de gente salpicados de purpurina e confete.

Os principais palcos são os sambódromos do Rio e de São Paulo, os trios elétricos de Salvador, os blocos de Olinda. Muitas vezes também ali o dinheiro supera o ronco da cuíca, os bem-nascidos tomam o lugar da gente do morro, enredos e passistas são obscurecidos pelo nu explícito. Os destaques das escolas, criadas em favelas e vilas, ficam para as estrelas globais e o narcisismo daqueles que, convencidos de sua esbeltez física ou fissurados pela fama, exibem-se nas passarelas de samba.

Sobra para alguns a tristeza de saber que a única alegria é dar ibope a quem desfila para exaltar a vitória de todas as cervejas. Assim, são condicionados a acreditar que a felicidade está ao alcance da mão, brilha como ouro e refresca como neve nesse calor tropical: no copo, o líquido dourado coroado pela espuma branca.

Também pudera, cerveja nas mãos, bola nos pés rumo à taça do próximo campeonato de futebol e o governo esperando que os investidores estrangeiros nos tragam mais dólares. Não merecemos o título de país dos canecos?

Frei Betto é escritor, autor de “Quando fui pai do meu irmão” (Alta Books -70), entre outros livros.