Para suportar a quarentena

Dois aspectos destacam‑se na prática ou militância de Jesus: sua radical opção pela causa dos pobres ‑ apresentada por ele como a causa preferencial do Pai – e a sua intensa vida de oração. É bem claro o projeto do Reino assumido por ele ‑ um tempo de justiça e de paz para todos.

A ótica da fé nos permite compreender a vida pelos olhos de Deus. Revela‑nos o sentido mais profundo e fundamental da existência. Porém, não pode haver sentido numa existência que sequer se encontra assegurada em suas necessidades básicas. Por isso, a plenitude da vida supõe, primeiro, a própria possibilidade material de subsistência. “Vocês nunca leram o que Davi e seus compa­nheiros fizeram quando estavam passando necessidade e sen­tindo fome?” (Marcos 2, 25) pergunta Jesus aos fariseus, para afirmar o princípio da sacralidade da existência material do ser humano sobre todos os demais preceitos considerados sagra­dos. “O sábado (o que havia de mais sagrado, segundo a Lei) foi feito para servir ao homem e não o homem para servir ao sábado” (Marcos 2, 27).

É essa defesa da vida como dom pri­mordial de Deus que faz Jesus materializar os critérios da sal­vação. Serão salvos aqueles que derem comida a quem tem fome, bebida a quem tem sede, casa a quem anda desabrigado, roupa a quem se encontra nu, saúde ao doente e solidariedade a quem padece opressão (Marcos 25, 35‑36). A justiça aos pobres é a condição primeira da conversão.

Sob o impacto das palavras de João Batista, as multidões perguntavam: “O que devemos fazer?” João indicava, como sinal de conversão, a partilha dos bens materiais, ou seja, a redução da contradição social em favor de possibilidade de vida ao pobre: “Quem tiver duas túni­cas, dê uma a quem não tem. E quem tiver comida, faça a mesma coisa” (Lucas 3, 10‑13).

Assim, essa opção eficaz ‑ que resulta em proporcionar aos pobres condições de saírem da pobreza ‑ é, para Jesus, a condição sine qua non para ser seu discípulo. “Falta só uma coisa para você fazer: vá, venda tudo, dê o dinheiro aos pobres, e você terá o tesouro no céu. Depois, venha e siga‑me”, disse ele ao homem rico (Marcos 10, 21).

Tal cumplicidade com os pobres decorre, na espiritualidade de Jesus, de sua certeza do amor preferencial do Pai por eles (Mateus 11, 25). Certeza adquirida na intensidade de sua vida de oração. Jesus não abandona o mundo para encontrar o Pai. Apenas abre espaço, em suas ativi­dades, para nutrir sua fé e sua experiência de amor com o Pai. É o espaço da ociosidade amorosa, necessário a todo ser humano, tão vital quanto o pão. Porém, gratuito, como tudo o que traz “vida em abundância”.

Sendo Deus uma pessoa com quem se tem diálogo e intimidade, e não mera referência semântica a um sentimento religioso, Jesus reserva parte de seu tempo a essa Pessoa, assim como se faz quando se trata de acolher uma pessoa muito querida. Lucas é quem mais chama a atenção para essa prática de Jesus: “Se retirava para lugares desertos, a fim de rezar” (5, 16). “Foi para a montanha a fim de rezar. E passou toda a noite em oração a Deus” (6, 12). “Subiu à montanha para rezar” (9, 28).

A oração era um mo­mento imprescindível nas atividades diárias de Jesus, assim como o sono e a alimentação, essenciais ao reabastecimento de nossas energias. Momento em que ele se deixava envolver pelo Pai e, assim, ver as coisas pelos olhos do projeto de Deus na história.

*Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor de “Fome de Deus” (Companhia das Letras), entre mais de 68 livros.