“O erro de Aristóteles. Mulheres poderosas, mulheres possíveis, dos gregos até nós”, é o título do livro de Giulia Sissa, professora de Ciências Políticas e Literatura Clássica e Comparada na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Ela analisa em profundidade os fundamentos que, ainda hoje, sustentam o machismo, a misoginia, o patriarcalismo e levam ao feminicídio.
Ao contrário de seu mestre Platão, que na “República” defende a igualdade entre sexos e a mesma educação para homens e mulheres, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), que tinha por hábito dissecar animais, se baseou em supostas bases biológicas para rechaçar qualquer possibilidade de igualdade. Defendeu inclusive a tese de que o cérebro das mulheres é menor que o dos homens.
Para Aristóteles, os homens são “quentes” e as mulheres, “frias”. Os primeiros são dotados de “thumos”, de ardor, e do “thumos” deriva a “andreia”, isto é, a coragem, virtude indispensável para combater, governar, manter-se firme na decisão tomada.
Já as mulheres são o oposto. Desprovidas de “thumos” e, portanto, de “andreia”, são incapazes de tomar decisões. E ao tomarem uma, não conseguem se manter firmes na decisão tomada.
O filósofo admite que as mulheres são até mais inteligentes e racionais do que os homens, devido à sua frieza, mas na falta de coragem não são confiáveis.
Essa lógica aristotélica conduz a um silogismo absurdo: como as mulheres são incapazes de governar, então devem se recolher ao lar, ficar afastadas da vida urbana e, silentes, obedecer a seus pais e maridos. “A relação de macho para fêmea é por natureza uma relação de superior a inferior e de governante a governado”, escreveu Aristóteles em “Política”.
Santo Tomás de Aquino (1225-1274), que popularizou o aristotelismo no Ocidente, abraça a tese de seu mentor intelectual e ainda adiciona um ingrediente no mínimo escabroso: além de inconstante e indigna de confiança, a mulher é um homem fracassado, um ser com defeito de fabricação – “femina est aliquid deficiens et ocasionatum”. Este preconceito fundamenta, ainda hoje, a noção de que a mulher é inepta ao sacerdócio por não ser um ser humano completo…
Segundo o Doutor Angélico, “naturalmente a mulher está sujeita ao homem, porque a discrição da razão naturalmente abunda mais no homem” (“naturaliter femina subiecta est viro, quia naturaliter in homine magis abundat discretio rationis”).
Assim, os homens seriam mais inteligentes e capazes que as mulheres. E estas, para bem desempenharem suas tarefas, devem ser guiadas pelos homens. Tomás cria um silogismo teológico: como Deus dotou os homens de superioridade cognitiva, só eles devem comandar e governar.
Como todos nós, Aristóteles e Tomás de Aquino eram pessoas ambíguas, contraditórias. Por isso, não podemos reduzi-los à sua postura misógina, pois os dois são alicerces sólidos da filosofia e da teologia. De Aristóteles recebemos a lógica, a metafísica, a ontológica natureza política do ser humano e princípios éticos fundamentais.
De Tomás, o maior filósofo e teólogo do período medieval, aprendemos a valorizar o mundo material; a autonomia da razão diante da fé; a liberdade de consciência, inclusive com direito a não professar nenhuma fé religiosa; a superação do dualismo platônico entre corpo e espírito; a pedagogia que valoriza a ação do educando no processo educativo.
Sobre este último tópico, recomendo o livro de meu confrade frei Carlos Josaphat, “Tomás de Aquino e Paulo Freire”, Paulus, 2016. Santo Tomás compara o educador ao médico e ao agricultor. Assim como o médico não produz a saúde, mas favorece o empenho do paciente em recuperá-la; e o agricultor não desenvolve a planta, mas cria as condições para ela crescer e frutificar, o educador deve valorizar os talentos e os conhecimentos do educando e torná-lo sujeito de seu processo educativo.
Se é anacronismo chamar Tomás de Aquino de paulofreiriano, não é exagero qualificar Paulo Freire de pedagogicamente tomista.
Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.