Sei que o título acima provoca engulho em muita gente, a começar por mim. Mas há que encarar a possibilidade com realismo. A direita, incluindo os barões do mercado financeiro, sabe quão difícil é ter candidato capaz de chegar ao segundo turno. Talvez Luciano Huck. O que interessa a ela é engordar os seus cofres. Pouco se importa com as diatribes de Bolsonaro, as milícias, o genocídio pandêmico, a explosão do desemprego e da miséria. Interessam apenas os índices da Bolsa e do câmbio.
O centro – título de mera retórica – pôs as barbas de molho ao ser surpreendido com Lula elegível. Todo o castelo de cartas que vinha sendo montado em torno de Moro, Doria, Mandetta e Ciro, agora desaba diante da possível polarização entre Bolsonaro e Lula.
Se acontecer dos dois chegarem ao segundo turno, será que a geleia do centro dará o seu voto a Lula? Desconfio que nem Ciro Gomes, como se negou em 2018. Todos afluirão aos braços de Bolsonaro, ainda que alguns torçam o nariz.
Visto de hoje, a conjuntura aponta um único candidato capaz de derrotar Bolsonaro no segundo turno: Lula. Mas não são favas contadas. Muita água haverá de correr por baixo dessa polarização. Lula pode nem chegar ao segundo turno se a oposição não articular uma frente ampla e disputar a eleição presidencial pulverizada em várias candidaturas sem programa consistente de governo.
Bolsonaro tem a seu favor, além dos 30% de devotados eleitores, a máquina do Executivo, a maioria do Congresso e do Judiciário, as Forças Armadas, as forças policiais e as milícias que aterrorizam o eleitorado. E haverá de reaquecer a narrativa antipetista e a demonização de todos que defendem pautas identitárias e de costumes.
Pode-se objetar: como ele explicará meio milhão de mortos pela pandemia? E as acusações de corrupção que pesam sobre seus filhos e amigos íntimos?
Ora, a primeira questão já encontra resposta. Bolsonaro culpa pela mortandade governadores e prefeitos, a quem a Justiça delegou poder de iniciativas. E sabe que algo assombroso ocorre hoje no Brasil: como ele, a maioria, se acostumou ao genocídio. Naturalizamos a morte precoce por asfixia e falta de leitos. Malgrado os apelos de médicos e cientistas, o alarde diário da grande mídia, as milhares de famílias enlutadas, não há respeito a medidas elementares, como uso de máscara e distanciamento social. Não se evitam aglomerações, e todo o espectro de cores implementadas por estados e municípios (fases laranja, vermelha, roxa, preta), são restrições inócuas.
Todos sabem que somente um lockdown severo, de 20 ou 30 dias, a exemplo de outros países, poderia reduzir a escalada de mortes. Mas como decretá-lo se o comércio enfrenta o efeito dominó das falências e a pressão do poder econômico tanto intimida quem se elegeu à sua custa?
Se houvesse, no Brasil, compensação dos cofres públicos às perdas do setor de serviços, o lockdown seria viável. Mas nem sequer se evitam aglomerações no transporte coletivo. Em suma, a narrativa de genocídio dificilmente haverá de sensibilizar os sobreviventes.
E a corrupção? Ora, Bolsonaro cuida de blindar todos que, à sua sombra, se envolveram em maracutaias. Interfere na Polícia Federal e no Judiciário, e conta com a gritante cumplicidade do silêncio das Forças Armadas.
Há que lembrar, ainda, o poder de mobilização das redes digitais, das fake news e do fundamentalismo religioso. Na eleição do 2022, a pauta de costumes voltará aos discursos que a oposição tem tanta dificuldade de tornar palatável às classes populares. Temas como kit gay, aborto, assassinato de bandidos, ilicitude penal, são prato cheio para as narrativas dos bolsominions.
Lula chegará ao segundo turno se, no primeiro, a oposição se dividir entre várias candidaturas? E quem, no primeiro turno, votou em candidatos da direita e do centro que se opõem a Bolsonaro, votará em Lula no segundo?
Lula só será eleito se tiver ao seu lado, além de eleitores, uma ampla mobilização popular capaz de, desde agora, ocupar as ruas, a exemplo do que ocorreu no Peru, em Mianmar e no Paraguai.
O povo brasileiro precisa sair dessa letargia de quem fica à espera de, amanhã, ocorrer um milagre que faça cessar a pandemia, ainda que o auxílio emergencial seja insignificante, a gasolina chegue a R$ 10 o litro, a inflação dispare, o desemprego aumente e, como no Equador, os cadáveres se amontoem nas ruas por falta de espaço nos cemitérios.
É hora de a oposição debater, não quem será candidato em 2022, e sim como tirar o povo brasileiro da inércia e qual projeto de Brasil apresentar à nação.
Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros.