A proximidade de Ecléa e Alfredo Bosi com os frades dominicanos levou o casal a descobrir o Cristianismo à luz da Teologia da Libertação e, ainda na década de 1960, a se inserir em Comunidades Eclesiais de Base na periferia de São Paulo. Com muita frequência nos encontrávamos em eventos e jantares anfitriados, na Granja Vianna, pelo casal Yolanda e Yoshio Kimura, seus vizinhos.
Alfredo teve a paciência de ler e criticar os originais de alguns de meus romances. Pouco antes da pandemia fui visitá-lo, em companhia de frei Márcio Couto, a convite de sua filha Viviana, quando ele já se encontrava abatido pela perda inconsolável de sua companheira inseparável, Ecléa, em 2017. Deu-me a impressão de que havia se demitido da vida.
Bosi é uma das figuras mais importantes da história da literatura brasileira, escrevi no texto para a orelha do livro em sua homenagem, Reflexão como resistência (São Paulo, Sesc/Companhia das Letras, 2018). Homem afável e generoso, afetiva e efetivamente vinculado ao mundo dos excluídos (embora sua modéstia tenha impedido que esta faceta fosse mais conhecida), cristão progressista e membro da Academia Brasileira de Letras, ele foi agraciado com a merecida homenagem prestada neste livro. (…)
Bosi foi um monge das letras, um intelectual engajado, um amigo cordial. Seu sorriso translúcido, sua silente atenção frente ao interlocutor e sua erudição camuflada pelos “olhos redondos e humilhados, represados por lentes”, como o descrevia Ecléa, faziam dele um homem singular.
Em agosto de 2014, Alfredo participou, em São Paulo, do seminário de comemoração dos 40 anos do martírio de frei Tito de Alencar Lima. Em seu pronunciamento, ressaltou: “Pertenço à geração que teve o privilégio (e sofreu os riscos) de compartilhar um momento decisivo da história da Igreja no Brasil e na América Latina. Assistimos e vivemos intensamente a mudança de rumo de uma doutrina e de uma prática que tirou um alto número de cristãos do conformismo para animá-los a assumir um engajamento social e político que preconizava reformas estruturais e, no limite, aderia a um ideal revolucionário.”
Em Os trabalhos de mão, dedicado a Ecléa, (O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo, Cultrix, 1990), o que Bosi escreveu qualifico de pura proesia: “Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. A mão sirva de exemplo. A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão apanha o objeto, remove-o, achega-o ao corpo, lança-o de si. A mão puxa e empurra, junta e espalha, arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola; roça, toca, apalpa, acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra; depois, massageia o músculo dorido.”
“A mão tateia com as pontas dos dedos, apalpa e calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate. A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pelo e o alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorciza. Acusa com o índex, aplaude com as palmas, protege com a concha. Faz viver alçando o polegar; baixando-o, manda matar. Mede com o palmo, sopesa com a palma. Aponta com gestos o eu, o tu, o ele; o aqui, o aí, o ali; o hoje, o ontem, o amanhã; o pouco, o muito, o mais ou menos; o um, o dois, o três, os números até dez e os seus múltiplos e quebrados. O não, o nunca, o nada.” (…)
“A mão prepara o alimento. Debulha o grão, despela o legume, desfolha a verdura, descama o peixe, depena a ave e a desossa. Limpa. Espreme até extrair o suco. Piloa de punho fechado, corta em quina, mistura, amassa, sova, espalma, enrola, amacia, unta, recobre, enfarinha, entrouxa, enforma, desenforma, polvilha, guarnece, afeita, serve.”
“A mão joga a bola e apanha, apara e rebate. Soergue-a e deixa-a cair. A mão faz som: bate na perna e no peito, marca o compasso, percute o tambor e o pandeiro, batuca, estala as asas das castanholas, dedilha as cordas da harpa e do violão, dedilha as teclas do cravo e do piano, empunha o arco do violino e do violoncelo, empunha o tubo das madeiras e dos metais. Os dedos cerram e abrem o caminho do sopro que sai pelos furos da flauta, do clarim e do oboé. A mão rege a orquestra.”
“A mão, portadora do sagrado. As mãos postas oram, palma, contra palma, ou entrançados os dedos. Com a mão o fiel se persigna. A mão, doadora do sagrado. A mão mistura o sal à água do batismo e asperge o novo cristão; a mão unge de óleo no crisma, enquanto com a destra o padrinho toca no ombro do afilhado; os noivos estendem as mãos para celebrarem o sacramento do amor e dão-se mutuamente os anulares para receber o anel da aliança; a mão absolve do pecado o penitente; as mãos servem o pão da eucaristia ao comungante; as mãos consagram o novo sacerdote; as mãos levam a extrema-unção ao que vai morrer; a ao morto, a benção e o voto da paz. In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum.”
Agora, Bosi, nas mãos de Deus, acarinha Ecléa. A paixão o arrancou desta para a outra vida. Morreu de amor.
Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor de “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros.