Para suportar a quarentena
É bom recordar o preceito de Jesus que resume todo o conteúdo da Bíblia e a sabedoria da vida: “Amar o próximo como a si mesmo” (Mateus 22, 39). Eis a essência de todas as religiões e de todas as virtudes. Não é nada fácil cumprir um mandamento aparentemente tão simples. Quem é meu próximo?, perguntou a Jesus o doutor da lei. E ouviu como resposta a parábola do Bom Samaritano (Lucas 10, 25-37).
Nela Jesus deixa claro que o próximo não é aquele que encontramos em nosso caminho. O próximo é, em especial, aquele cuja carência – material, psíquica ou espiritual – faz com que modifiquemos o próprio caminho, alteremos a nossa rota, para dar-lhe atenção e dele cuidar. Foi o que fez o samaritano ao deparar-se com um desconhecido caído à beira da estrada.
Vivemos todos permanentemente cercados de “próximos”: pessoas que conhecemos pelo nome e com quem mantemos relações de parentesco, vizinhança, trabalho ou amizade. Nem todas são propriamente amáveis. Nossa capacidade de amar é seletiva. Amamos quem nos ama, agradamos quem nos agrada, servimos a Há sempre uma reciprocidade que não é necessariamente interesseira. Trata-se de uma questão de empatia, simpatia, afinidade, propósitos e ideais comuns. E sabemos o quanto é difícil manifestar amor aos chatos e inoportunos. Sobretudo aos que se intrometem em nossas vidas sem serem convidados.
Não é nada fácil delimitar onde termina o amor e começa o interesse. Somos todos, sem exceção, um feixe de contradições. Por vezes gostamos de uma pessoa porque ela abastece a nossa autoestima, incensa-nos o ego, tolera os nossos defeitos. Por isso se diz que o verdadeiro amor se conhece nos tempos de vacas magras.
Somos capazes de amar quem nos critica? Ou melhor, recebemos a crítica como ofensa ou como sinal de amor? Há, sim, críticas ofensivas, carregadas de rejeição. Mas quem de nós pede aos amigos que nos manifestem suas críticas?
Pascal afirma que “o homem que só ama a si mesmo a nada odeia tanto como ficar só consigo mesmo.” Pois quando ele se vê, não vê o que acredita que os outros veem nele, e sim a sua inconsistência, o seu vazio, a sua miserável pretensão. Quem se recusa a ser solidário corre o risco de ficar solitário.
Jesus diz que devemos amar o próximo como a nós mesmos. Ou seja, há uma condição para bem amar: gostar de si mesmo! A recíproca é facilmente percebível: ai de quem se encontra à nossa volta quando estamos mal conosco!
Amar a si próprio nada tem a ver com o nefasto sentimento de arrogância ou prepotência de quem se julga melhor do que os outros. Isso não é amor, é egocentrismo. Amar a si mesmo é ser humilde, palavra que deriva de húmus, terra, e significa ter os pés no chão e não se considerar nem maior nem menor do que ninguém. Sobretudo é cultivar valores espirituais e, portanto, sentir-se bem consigo mesmo, malgrado as incompreensões e as adversidades, e querer fazer o bem ao próximo.
As mais tradicionais correntes religiosas concordam que o agir humano deveria consistir em jamais fazer a outros o que não queremos que nos façam. Este é o mais elementar princípio ético. Jesus o inverteu positivamente. E foi além ao exigir de seus discípulos que amem seus inimigos.
Amar o inimigo não é suportar calado as ofensas dele, aguentar resignado a opressão, deixar-se explorar sem protestar. É querer o bem dele, a ponto de ajudá-lo a deixar de ser arrogante, opressor ou explorador.
Assim podemos entender o gesto ousado de Jesus ao derrubar as mesas dos cambistas no Templo de Jerusalém e ainda expulsá-los dali com uma chibata feita de cordas. Tratou de fazê-los descer do pedestal em que se encontravam e dar-lhes consciência de que a casa de Deus não é um mercado, nem a fé um produto que se negocia.
O amor se apoia em duas pernas: respeito e justiça. Para consigo, os outros, a natureza e Deus. Mas quem ama de verdade nem precisa pensar no modo de caminhar. Assim como quem respira não se dá conta da inspiração e da expiração.
Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.