Estimado frade,

Tenho 21 anos. Em 2009, com 9 anos de idade, fui submetida a um aborto. Eu tinha 1,35 e menos de 35 quilos. Segundo os médicos, caso a gravidez prosseguisse morreriam eu e o bebê. Agora soube que caso semelhante ocorreu no Espírito Santo. A menina tem 10 anos.

Nossas histórias têm muitas semelhanças. Tanto ela quanto eu fomos estupradas desde os 6 anos de idade. Ela pelo tio; eu, pelo padrasto. E nós duas tivemos uma infância amargada também pela pobreza. Eu não tinha pai, ela não tem mãe. E o pai dela se encontra na prisão.

Indefesas, fomos obrigadas a nos submeter por medo, muito medo. Isso destroçou nossas infâncias. Eu sentia ódio daquele homem que me violentava com frequência. E ele prometia castigar-me severamente caso eu revelasse o que fazia comigo. O medo paralisa, congela, entope a garganta.

Um dia, comecei a passar mal. Nem minha cabeça nem minha mente estava preparada para a maternidade. Fui levada ao hospital, onde o médico fez o aborto.

A Igreja cristã excomungou toda a equipe médica e os nossos familiares, tanto no meu caso quanto no da menina capixaba. Em um país de tradição cristã como o Brasil, isso significa colocar sobre nossas costas mais uma cruz, a de uma mancha indelével. Por isso, cresci com raiva da Igreja: ela me abortou.

Bispos, padres e pastores nos condenaram sem condenarem a situação que nos levaram a tanto descalabro. Por que não condenam as causas da miséria? Nossos estupradores não teriam sido diferentes se tivessem tido escola e emprego? Nossas famílias não teriam cuidado melhor de nós, e nos oferecido uma infância sadia, se não tivessem sido injustamente empurradas para a miséria? Por que nos condenam e não a quem lamenta a ditadura não ter matado 30 mil? Nem a indiferença de quem poderia ter evitado a morte de mais de 100 mil pela Covid-19? Por que não condenam quem defende o linchamento de bandidos ou adota políticas econômicas que aprofundam a desigualdade social e alastram a miséria que sacrificam a infância de tantas crianças?

É covardia condenar pessoas e fechar os olhos às circunstâncias. Alguém pode chegar ao cúmulo do cinismo de achar que, ao longo daqueles anos, sentimos prazer em ser estupradas sob surras e ameaças?

Deus, porém, é imprevisível. Há meses Ele entrou na minha vida. Sinto-me muito amada por Ele. Fui buscar na Bíblia como Jesus teria agido diante de nossos casos. Teria também nos apartado da comunhão com seus discípulos?

Agora leio os Evangelhos com frequência. Entre o que dizem a Igreja e alguns cristãos, e o proceder de Jesus, vejo que não há convergência. Por isso gostaria de ouvir a sua opinião. Não tenho conhecimentos de teologia, mas o amplo apoio que recebi após aquele sofrimento atroz me permitiu sair da miséria, estudar e desfrutar de uma vida digna.

Narra o capítulo 4 do Evangelho de João que, um dia, Jesus encontrou uma mulher samaritana à beira do poço de Jacó. Ela teve cinco maridos e, agora, vivia com um sexto homem com quem não era casada. Se Jesus pensasse como esses bispos, padres e pastores que nos achincalharam ele teria evitado o contato com uma mulher tão promíscua. Teria feito um sermão moralista abominando tamanha rotatividade conjugal. Teria condenado a samaritana ao quinto dos infernos.

Essa gente jamais teria percebido, como Jesus, que ela trazia no coração um buraco tão profundo que só mesmo Deus seria capaz de caber ali dentro. Foi o que ele fez: não a recriminou e ainda a elogiou por falar a verdade! E foi ela a primeira pessoa a quem ele se revelou como Messias. E ao retornar à cidade para anunciar que o havia encontrado, ela se tornou de fato a primeira apóstola.

Jesus também não condenou a mulher adúltera. Ao contrário, fez os seus acusadores, de pedras nas mãos, admitirem que os pecados deles eram maiores que os dela. Jesus não condenou Madalena, que portava “sete espíritos maus”. Acolheu-a, fez dela discípula e a ela concedeu o mérito de ter sido a primeira testemunha da ressurreição.

Não sei se estou certa em meu modo de pensar. Por isso, escrevo ao senhor. Ainda preciso de misericórdia, no sentido etimológico do termo – de gente capaz de postar seu coração junto à miséria alheia.

Deus o abençoe!

X.