Tome-se um rapaz educado em família pobre ou de classe média baixa, morador de favela ou bairro de periferia, marcado pelo ressentimento frente aos jovens de classe média e rica com acesso a bens de consumo que lhe são proibitivos. Aliste-o na Polícia Militar, vista-o com a farda que lhe imprime autoridade, coloque em suas mãos armas como pistolas Glock ou fuzil Parafal. Convença-o de que, agora, não apenas zela pelo cumprimento da lei, mas também está investido do poder de agir acima da lei, protegido pela impunidade.
Ele não vai sair atirando a esmo nas primeiras rondas que faz. Mas estará em companhia, na mesma viatura, de colegas que se gabam de já ter dado fim a tantos “marginais”. Verá seus colegas de farda abordarem um suspeito (em geral, negros) na base de tapas e rasteiras. Poderá estacionar em uma padaria ou restaurante, comer e beber à vontade, sem pagar, e ainda escutará, na saída, a voz agradecida do gerente ou proprietário. E aprenderá rápido como colegas seus, com o baixo soldo da PM, possuem casa própria, carros de luxo e sítios: dinheiro obtido com “bicos” nas horas vagas; vista grossa frente ao narcotráfico e milícias; apropriação de valores encontrados em batidas policiais.
Sim, sei que policiais corruptos são exceção e que, todos os anos, vários são expulsos da corporação. Só no Rio 40 policiais militares já foram expulsos em 2023. Mas são assustadores os dados. No Rio, de janeiro a março de 2023, houve aumento de 160% no número de civis mortos, e 106% de feridos por “balas perdidas”, comparado com o mesmo período do ano passado. Nos últimos 30 dias, foram assassinadas, supostamente em “confrontos” com a PM, 30 pessoas na Bahia, 19 no Guarujá (SP) e 13 no Rio.
E como explicar tantas armas privativas da Polícia Militar e das Forças Armadas apreendidas em mãos de bandidos, milicianos e traficantes? Por que os sistemas de controle são tão precários?
Como um rapaz, que ingressou na PM motivado por ideais nobres, se torna autor de crimes hediondos? Apenas envolvidos no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes se incluem Ronnie Lessa, na época do crime sargento reformado da PM (só foi expulso da corporação em fevereiro de 2023); Élcio de Queiroz, lotado no 16ºBPM, batalhão responsável por Olaria, Vigário Geral, Cordovil e outros bairros da Zona Norte carioca; Maxwell Simões Corrêa (expulso do Corpo de Bombeiros do Rio em maio de 2022); Edimilson da Silva de Oliveira, policial militar reformado, morto a tiros em novembro de 2021, caso que é visto como uma possível execução; e os ex-policiais José Carlos Roque Barboza; Adriano da Nóbrega, chefe do Escritório do Crime, assassinado em 2020, na Bahia (possível execução); e o braço-direito de Adriano, Luiz Carlos Martins, o Orelha, assassinado em 2021, em Realengo, Rio (possível execução).
Procede o espanto de Ruy Castro: “Incrível o que o salário de um ex-PM pode comprar. O homem que atirou em Marielle Franco e Anderson Gomes, hoje preso, o ex-policial Ronnie Lessa, possui um terreno de 3.500 metros quadrados no condomínio Portogalo, em Angra dos Reis; um imóvel num condomínio em Mangaratiba; dois carros blindados, avaliados em R$ 150 mil cada; e uma casa no condomínio Vivendas da Barra, tendo como vizinho e colega de patuscadas Jair Bolsonaro.”
Será que no currículo dos cursos de formação de policiais militares que, em geral, duram dois anos, há disciplinas como ética e direitos humanos?
Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.