Em 25 de novembro comemoram-se cinco – oito anos da transvivenciação de Fidel. Não saberia dizer quantas conversas privadas tive com ele, desde que o conheci, em 1980. Após o nosso primeiro encontro, em Manágua, fiz inúmeras viagens a Cuba, e acredito que, a partir de 1985, em quase todas elas surgiu a oportunidade de encontrá-lo.
Mas nunca tive acesso direto a ele. Enganavam-se aqueles que me ligavam e pediam que eu fosse portador de uma carta ou de um apelo a Fidel. Não era alguém que eu pudesse chamar por telefone, embora ele tenha me ligado algumas vezes. Uma delas foi em 2010, pouco antes da eleição presidencial que daria vitória a Dilma Rousseff. Eu me encontrava em São Paulo, no Esch Café, em companhia – por coincidência – do embaixador de Cuba no Brasil e do cônsul em São Paulo. Fidel queria saber sobre as chances de Dilma, do PT e sucessora de Lula, ser eleita presidente da República. Os dois diplomatas, surpresos, devem ter imaginado que tais chamadas a mim fossem frequentes…
Desconfio que, como eu, ele detestava falar ao telefone. Nas poucas vezes que o vi ao aparelho – uma, em seu gabinete, para cumprimentar o amigo Carlos Rafael Rodríguez, que fazia aniversário, e outra, certa noite em Havana, na casa do embaixador do Brasil, Ítalo Zappa, para cancelar um compromisso – foi tão sucinto que parecia o avesso daquele homem que, de uma tribuna, era capaz de entreter a multidão por horas seguidas.
Em 19 de fevereiro de 2016, eu me encontrava em Havana, no meu último dia na cidade naquela ocasião, já de malas prontas para embarcar à tarde de volta ao Brasil. Fui pela manhã à Casa das Américas – a mais importante instituição cultural da América Latina -, assistir ao filme “Batismo de sangue”, baseado em meu livro homônimo, e havia marcado almoço com Homero Acosta e, em seguida, tomar o rumo do aeroporto.
Para minha surpresa, Homero chegou bem antes do previsto e me retirou do salão no qual o filme era exibido. Dalia Soto del Valle, esposa de Fidel, havia ligado para ele dizendo que o Comandante tinha interesse em falar comigo pelo telefone. Por razões de segurança, a chamada não poderia ser por celular. Tínhamos que retornar ao hotel e, de lá, ligar do telefone fixo do apartamento em que me hospedei.
Ocorre que eu já tinha fechado a conta no Meliá Habana. Ainda assim, Homero insistiu em retornarmos ao hotel. Por sorte, o apartamento permanecia vazio. Homero fez a ligação e me passou o aparelho. Dalia me disse que, lamentavelmente, “el Jefe” não pudera me encontrar naqueles dias, mas antes que eu partisse queria ao menos me saudar por telefone. Fidel, sempre atencioso comigo, indagou se eu tinha mesmo que retornar ao Brasil naquela tarde, se não poderia ficar mais uns dias. Expliquei-lhe as dificuldades.
─ Mas, pelo menos, pode vir aqui para tomar um café? – convidou-me.
Respondi positivamente. Ao entrar no carro de Homero, nem ele nem Roberto, o motorista, sabiam onde ficava a casa de Fidel. Um segredo guardado a mil chaves por razões de segurança. No entanto, eu estivera lá várias vezes e conhecia bem o trajeto. De modo que se criou uma situação inusitada: um frade brasileiro indicando a um alto funcionário do Palácio da Revolução e a seu motorista o caminho da residência do Comandante. Aliás, foi a primeira vez que Homero esteve pessoalmente com Fidel, o que se repetiu em minhas visitas posteriores a Cuba, inclusive no dia em que ele completava 90 anos.
O que primeiro chamava a atenção quando se deparava com Fidel era a sua imponência. Parecia maior do que era, e a farda lhe revestia de um simbolismo que transmitia autoridade e decisão. Quando ingressava em um recinto era como se todo o espaço fosse ocupado por sua aura. Os que estavam em volta se calavam atentos a seus gestos e palavras. Os primeiros instantes costumavam ser constrangedores, pois ficavam todos esperando que ele tomasse a iniciativa, escolhesse o tema, fizesse uma proposta ou lançasse uma ideia, enquanto ele persistia na ilusão de que a sua presença era uma a mais na sala e que lhe dariam o mesmo tratamento amigável, sem cerimônias e reverências. Como na canção de Cole Porter, ele devia se perguntar se não seria mais feliz sendo um simples homem do campo, sem a fama que o revestia.
Diz a lenda que, altas madrugadas, costumava dirigir seu jipe pelas ruas de Havana, incógnito. Sei que tinha o hábito de aparecer inesperadamente na casa dos amigos, desde que visse uma luz acesa, e embora alegasse que permaneceria apenas cinco minutos, não seria surpresa se ficasse até que os primeiros raios de luz prenunciassem a aurora.
Outro detalhe que surpreendia em Fidel era o timbre de voz. O tom em falsete contrastava com a corpulência. Às vezes soava tão baixo que seus interlocutores apuravam os ouvidos como quem recolhe segredos e revelações inéditas. E, quando falava, não gostava de ser interrompido. Magnânimo, passava da conjuntura internacional à receita de espaguete, da safra de açúcar às recordações de juventude.
Porém, não se deve julgá-lo um monopolizador da palavra. Jamais conheci alguém que gostasse tanto de conversar como ele. Por isso não concedia audiências. Repugnavam-lhe os encontros protocolares, nos quais as mentiras diplomáticas ressoam com a classe de verdades definitivas. Fidel não sabia receber uma pessoa por 10 ou 20 minutos. Quando a encontrava, ficava com ela ao menos uma hora. Com frequência, a noite toda, até se dar conta de que era hora de ir para casa, tomar um banho de piscina, comer algo e dormir.
Na conversa pessoal, o líder cubano procurava extrair o máximo de seu interlocutor. Quando se entusiasmava com um tema, queria conhecer todos os seus aspectos. Indagava a respeito de tudo, o clima de uma cidade, o corte de uma roupa, o tipo de couro de uma pasta ou sobre aviões militares de um país. Se o parceiro não dominava os detalhes do tema suscitado, o melhor era mudar de assunto.
Ainda que iniciasse o diálogo confortavelmente sentado, logo tinha-se a impressão de que qualquer poltrona era demasiadamente estreita para o seu corpanzil. Eletrizado pela excitação de suas próprias ideias, Fidel se levantava, andava de um lado a outro, parava no meio da sala, os pés juntos, o tronco arqueado para trás, a cabeça tombada sobre a nuca e o dedo em riste; bebericava uma dose cowboy de uísque, provava um canapé, curvava-se sobre o interlocutor, tocava-lhe o ombro com as pontas dos dedos indicador e médio; sussurrava-lhe ao ouvido, apontava incisivo o indicador direito, gesticulava veemente, erguia o rosto emoldurado pela barba e abria a boca, exibindo os dentes curtos e pálidos, como se o impacto de uma ideia lhe exigisse reabastecer os pulmões; fitava o interlocutor com seus olhos miúdos e brilhantes, como quem quer absorver cada informação transmitida.
Era preciso muita agilidade para acompanhar seu raciocínio. Sua prodigiosa memória se enriquecia por uma invejável capacidade de fazer complicadas operações matemáticas mentais, como se acionasse um computador no cérebro. Gostava que lhe contassem casos e histórias, descrevessem processos produtivos, traçassem o perfil de políticos estrangeiros. Mas não admitia que invadissem sua privacidade, guardada a sete chaves. A menos que o interesse estivesse relacionado à sua única paixão: a Revolução Cubana.
Sempre cercado por atentos seguranças, Fidel sabia que não era alvo apenas das atenções de admiradores. Durante doze anos, entre 1960 e 1972, mafiosos como Johnny Roselli e Sam Giancana, interessados em recuperar os cassinos expropriados pela Revolução, tentaram assassiná-lo em colaboração com a CIA.
Apesar de tudo, sobreviveu. E faleceu aos 90 anos, serenamente, na cama, cercado de seus familiares.
Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a religião” (Companhia das Letras), entre outros livros.