Frei Tito de Alencar Lima simboliza todos os torturados pela ditadura militar brasileira (1964-1985). Tinha 28 anos ao ser induzido ao suicídio em 10 de agosto de 1974 por tantas sevícias, choques elétricos, queimaduras na pele e pancadas na cabeça sofridos no DOPS de São Paulo, em novembro de 1969, e no DOI-CODI, em fevereiro de 1970. Seu silêncio ecoou. E salvou vidas.
Convivi anos com Tito, desde a adolescência, quando éramos dirigentes da JEC (Juventude Estudantil Católica). Partilhávamos em segredo nosso projeto vocacional: abraçar a vida religiosa na Ordem Dominicana. Moramos no mesmo convento, estudamos juntos filosofia, atuamos da resistência à ditadura e dividimos a mesma cela de prisão.
Tito era uma alma poética. Passava horas recolhido em oração ou dedilhando o violão que recebeu no cárcere. Libertado em janeiro de 1971 em troca do embaixador suíço, que havia sido sequestrado, no exílio Tito escreveu “Quando secar o rio da minha infância”.
Atordoado por alucinações decorrentes das alterações psíquicas provocadas pelas torturas, recorreu à infância feliz em Fortaleza em busca de salvação:
“Quando secar o rio da minha infância / secará toda dor. / Quando os regatos límpidos de meu ser secarem, / minh’alma perderá sua força. / Buscarei, então, pastagens distantes / irei aonde o ódio não tem teto para repousar.”
O rio benfazejo da infância corria em seu coração, mas suas águas se exauriam, bem como os “regatos límpidos” de seu ser. A correnteza se transformara no dilúvio que o afogava por dentro. Só lhe restava uma esperança, típica de sua paisagem ancestral: a seca. Seca é supressão de vida, aridez. Ela lhe traria o ocaso. A alma feneceria. Então ele seria levado a “pastagens distantes”, lá onde se encontra o Paraíso, lá “onde o ódio não tem teto para repousar”. Peregrino de Deus, “ali, erguerei uma tenda junto aos bosques”.
“Todas as tardes me deitarei na relva, / e nos dias silenciosos farei minha oração. / Meu eterno canto de amor: expressão pura de minha mais profunda angústia.”
O rio e os regatos secaram. No entanto, a morte lhe trouxe vida. Nas “pastagens distantes” não há ódio, só amor, e ali ele expressava sua “mais profunda angústia”. A catarse. Por isso, armou ali a sua tenda ao frescor e à sombra dos bosques. Tito agora já podia se deitar na relva, ouvir o silêncio dos dias e proferir sua oração: “eterno canto de amor”. Esse canto o libertava.
“Nos dias primaveris, colherei flores para /meu jardim da saudade. / Assim, exterminarei a lembrança de um passado sombrio.”
Despontavam os “dias primaveris”. O inverno e o inferno haviam ficado para trás. Agora podia colher flores para seu jardim da saudade. Não dos tempos lúgubres. Saudade do futuro, no qual “secará toda dor”. Assim, já não há “lembrança de um passado sombrio”.
Adélia Prado homenageia Frei Tito no poema “Terra de Santa Cruz” (1981):
“Porque o frade se matou / no pequeno bosque fora de seu convento.”
Por que não o detiveram?
“Onde estavam o guardião, o ecônomo, o porteiro, / a fraternidade onde estava quando saíste, / ó desgraçado moço da minha pátria, / ao encontro desta árvore?”
A poeta, contudo, sabe que “os torturadores todos enlouquecem ao fim, / comem excrementos, odeiam seus próprios gestos obscenos, / os regimes iníquos apodrecem”.
Clara de Góes em “A Frei Tito”, observa:
“o corpo se insurge / no jovem padre / enforcado na manhã/ cinzenta em que os anjos dormiam __ / um pouco mais.”
Affonso Romano de Sant’Anna, no poema “O torturado e seu torturador”, pergunta:
“O que procura o tortura-dor / nas pedras do rim alheio / como vil minera-dor? / O que ama esse ama-dor / da morte? / esse morcego suga-dor / sob os porões da corte? / esse joga-dor / de jogo bruto / e cria-dor do luto?
“Sob a tortura / o que há de melhorar no homem / jamais se manifesta. Quando muito / podeis catar no chão / o pouco que dele resta. / Mas soltai-o em festa, ao sol, / e vereis que a verdade / de seus gestos se irradia.
“Livre, / vestindo a pele do dia, / o torturado caminha / com seu corpo tatuado / de violência e poesia.
“Mas ele não marcha só. / Apenas segue na frente / na direção da utopia.”
Com seu ousado gesto, Frei Tito resgatou a dignidade de todos aqueles que se matam, não por covardia, mas pela coragem de não se resignarem à loucura que os faz estranhos a si mesmos. Estilhaçado, o espelho interior já não lhes permite contemplar amorosamente a sua face mais íntima. Então buscam, atrás dos cacos, o perfil original. Como filhos pródigos que tiveram suas vidas gastas pela dor, são acolhidos em festa pelo Pai/Mãe de Amor.
Frei Betto é escritor, autor de “Batismo de sangue” (Rocco), entre outros livros.