Para suportar a quarentena
O título desta recensão pode parecer provocativo. No entanto, John Dominic Crossan responde afirmativamente em seu alentado “O Jesus Histórico – a vida de um camponês judeu no Mediterrâneo”. Mas não se espantem os leitores. As palavras, como os textos, têm a sua arqueologia semântica. A rigor, não somos todos filhos da mãe? Um pesquisador do século XXX que encontrasse esta expressão em filmes do século XX, talvez inferisse tratar-se de contenda entre irmãos. Do mesmo modo, ao concluir que “o Jesus histórico era um camponês judeu cínico” (p. 460), o autor não imprime ao adjetivo qualificativo o significado corrente na linguagem de hoje.
No teatro grego, hipócrita era o ator que repetia frases sem participar da ação cênica. Na boca de Jesus, um modo de (des)qualificar os fariseus que pregavam o que não viviam. Assim, cínicos eram os discípulos de Diógenes de Sínope (400-320 a.C.) que buscavam a felicidade através de radical liberdade. Segundo Farrand Sayre, em The Greek Cynics (Baltimore, 1948), os cínicos esforçavam-se por libertar-se dos desejos, do medo, das autoridades religiosas e públicas, das preocupações com a opinião alheia, do confinamento a uma localidade e da preocupação de sustentar mulher e filhos.
Isso não significa que Jesus fosse discípulo de Diógenes, a quem Aristóteles chamava de “cachorro”, por fazer tudo em público. Mas, em sua ousada liberdade, o filho de Maria teria se caracterizado por um comportamento que destoava dos códigos sociais, morais e religiosos predominantes na Palestina do século I.
“Onde está Jesus?” tem sido, ao longo dos séculos, um jogo mais atrativo que “Onde está Wally?”. Qual perfil seria mais adequado ao jovem galileu? De revolucionário (Brandon), libertador (Boff), mago (Morton Smith), carismático (Venes), rabino (Chilton), proto-fariseu (Fox), profeta escatológico (Sanders), fundador de uma Igreja (Ratzinger) ou de Jesus rei, abade, cordeiro ou juiz que marca a espiritualidade de tantos cristãos? O fato é que o inconsciente coletivo do Ocidente e da Europa oriental gira em torno desta figura enigmática, originária de Nazaré, uma aldeia obscura, líder de um grupo dissidente do judaísmo, pregador ambulante e, segundo fontes judaicas e romanas, assassinado na cruz em Jerusalém por volta do ano 30 de nossa era.
É provável que Jesus fosse relegado ao anonimato que encobre milhares de crucificados palestinenses da mesma época – até hoje, o esqueleto de apenas um foi encontrado, em 1968 – se seus discípulos não tivessem testemunhado um evento singular: ele ressuscitou, comprovando sua origem divina.
O impacto da ressurreição dilatou a comunidade apostólica em Igreja e, três séculos depois, minou os alicerces do Império Romano. O Cristo da fé sobrepujou, na consciência dos fiéis, o Jesus histórico. Nas igrejas era comum se atribuir caráter histórico aos relatos canônicos de Mateus, Lucas, Marcos e João, redigidos, segundo o magistério eclesiástico, sob inspiração divina.
Quem era e como era o homem Jesus de Nazaré? Milhares de livros foram escritos desde que, em 1863, Ernest Renan esboçou uma resposta em seu clássico “A vida de Jesus”. No Brasil, a melhor obra é “Jesus Cristo, Libertador”, de Leonardo Boff (Vozes). Renan, entretanto, não foi o primeiro a buscar a face humana do Ressuscitado. Nem cabe aos quatro evangelistas este mérito. Os textos canônicos, que hoje constam de nossas Bíblias, foram compilados a uma distância de mais de 40 anos da morte de Jesus.
Crossan, em detalhada e erudita pesquisa, cujo método articula antropologia, história e linguística, demonstra que os quatro evangelhos, tais como aceitos hoje pelas Igrejas cristãs, são como cidades modernas edificadas sobre ruínas de antigas construções. Dos inúmeros evangelhos escritos nos séculos I e II, restam fragmentos de pelo menos uma dúzia deles. Na arqueologia dos textos, a versão atual de Marcos (70 d.C.) inclui narrativas como Ressurreição de um morto, A família do ressuscitado e a versão original conhecida como Evangelho secreto de Marcos. Por sua vez, Marcos serviu de base ao texto de Mateus (90 d.C.), que incorpora relatos do Evangelho das sentenças Q (50 d.C.) e do Evangelho da cruz (50 d.C.) – fontes também utilizadas nas versões canônicas de Lucas (90 d.C.) e de João (início do séc. II). Este último incorpora, entre os capítulos 2 e 14, o Evangelho dos sinais.
Como bom scholar, Crossnan faz um exaustivo estudo do contexto mediterrâneo do século I e defende a tese de que Jesus rechaçou qualquer mediação entre Deus e os homens, como o Templo de Jerusalém. Para evitar que se formasse em torno dele um movimento institucionalizado, preferiu a pregação itinerante, recusando a proposta de Pedro de fixar-se em Cafarnaum. Apontou, como já presente entre nós, o Reino futuro aguardado por seus contemporâneos, e revelou um Deus que ama os excluídos, perdoa os pecadores e exige justiça dos poderosos. A essência de sua proposta estaria numa sociedade igualitária, simbolizada pela partilha de bens essenciais como o pão, o peixe e o vinho. Jesus “não buscava uma revolução política, mas uma revolução social que afetaria as profundezas mais perigosas da imaginação. Não se dava nenhuma importância às distinções entre gentio e judeu, homem e mulher, escravo e homem livre, ricos e pobres. Essas distinções mal chegavam a ser atacadas na teoria: elas simplesmente eram ignoradas na prática” (p. 12).
Sempre haverá “uma dialética entre uma leitura histórica de Jesus e uma leitura teológica de Cristo” (461), reconhece o autor. Assim como a física jamais verá um elétron ou um trio de quarks, mas é capaz de identificá-los por suas sequelas nos aceleradores atômicos, jamais saberemos exatamente como era o homem de Nazaré. Contudo, o que sabemos e cremos, ainda que não corresponda à realidade dos fatos, representa um radical questionamento à nossa maneira de viver e de encarar a existência. Ao instaurar, por suas palavras e atos, a ontológica sacralidade de todo ser humano, Jesus detonou uma revolução cultural que derruba todas as barreiras étnicas, raciais, sexuais e sociais. E abriu-nos a possibilidade imediata de experimentar Deus, amorosamente, em nossos corações. Como diria Gilberto Gil, deu-nos régua e compasso. Resta-nos fazer o traçado.
Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.