Um vereador de São Paulo, diplomado em ódio e a cata de votos neste ano eleitoral, decidiu abrir uma CPI para investigar o padre Júlio Lancellotti, que trabalha há anos com o povo da rua. Acuado pela repercussão na mídia e tantas manifestações de apoio ao sacerdote, o vereador alega que seu objetivo é investigar as ONGs que atuam junto aos que se aglomeram na Cracolândia, no centro de São Paulo.
Desconfio que o vereador deu um tiro no pé. Responsável pela Pastoral do Povo da Rua, Lancellotti recebeu, frente às acusações descabidas, apoio do cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, e de inúmeras personalidades do Brasil e do exterior. Aliás, o líder do partido do vereador na Câmara Municipal, Fábio Riva, declarou que a convocação do padre “extrapola” o pedido inicial.
O presidente Lula disse que “Graças a Deus tem figuras como o padre Júlio Lancellotti na capital de São Paulo, que há muitos e muitos anos dedica a sua vida a tentar dar um pouco de dignidade, respeito e cidadania a pessoas em situação de rua. Que dedica sua vida a seguir o exemplo de Jesus. Seu trabalho e da arquidiocese de São Paulo são essenciais para dar algum amparo a quem mais precisa.”
Júlio é exemplo raro de sacerdote. Enquanto boa safra de padres formados ao longo dos 34 anos de pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI está preocupada com status, minudências litúrgicas, se exibir em público em vestes sacerdotais e galgar degraus do carreirismo eclesiástico, Júlio coloca em risco sua vida para atender os mais excluídos, aqueles que são vistos nas ruas como “leprosos”, que cheiram mal e devem ser evitados e repudiados. Caminha nos passos de Jesus.
Júlio já sofreu todo tipo de ataques, assim como aconteceu a Jesus, acusado de endemoniado (Mateus 12,24), louco (Marcos 3,21), blasfemo (Lucas 5,21), subversivo (Marcos27,1) e herege (Mateus 26,65). Destemido, o pastor não teme defender o povo da rua dos abusos policiais, acolhê-lo em sua igreja, denunciar as obras públicas que visam a impedir que se possa buscar abrigo sob viadutos ou em parques.
Júlio fez o mesmo com crianças de rua e internos da Febem. E não agia como quem se interessava em “catequizá-los”. Sabe muito bem, graças à sua boa formação teológica, que essa gente excluída expressa de modo especial a face viva de Jesus, que com eles se identificou (Mateus 25, 31-44). Quer apenas que se sintam pessoas dotadas de dignidade e direitos, ainda que a nossa sociedade, fundada na desigualdade econômica, os tenha escorraçado para as calçadas da mendicância e os becos do desamparo.
Quem levaria para casa uma criança nascida com Aids e abandonada pela família? Padre Júlio já levou centenas, como sou testemunha. O vereador misantropo não viu as duas unidades da Casa Vida em São Paulo, que visitei com frequência. Ali as crianças recebiam cuidados médicos e terapêuticos; eram educadas no asseio e escolarizadas; aprendiam a ter autoestima e ser felizes. Cego, o vereador não enxerga nada disso. Nem mesmo este detalhe: cerca de 90 crianças, mesmo virtualmente condenadas à morte por uma enfermidade incurável, foram adotadas por famílias europeias.
Padre Júlio opera milagres: casais que, impossibilitados de procriar, escolheram adotar uma criança filha da miséria e contaminada pelo vírus HIV. Graças à evangélica dedicação do pastor das ruas, cujo testemunho enobrece a espécie humana.
Ele mereceria, caso existisse, o Prêmio Nobel da Solidariedade. E todo o nosso apoio.
Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.