As instituições (partidos, sindicatos, igrejas etc.) que nascem com ímpeto inovador, profético, revolucionário, tendem a se tornar burocráticas, oligárquicas, contrárias à proposta de origem. Esta a tese defendida por Robert Michels (1876-1936) em seu clássico “Sociologia dos partidos políticos”, publicado em 1911.
Segundo Max Weber, Michels se desiludiu com a ala esquerda do SPD (Partido Social-Democrata) da Alemanha. Acusou-o de “eleitorarismo”, voltado quase que exclusivamente para ganhar eleições; de “parlamentarista”, no sentido de restringir a atuação política ao jogo parlamentar; e de “oportunismo” dos líderes, preocupados prioritariamente em se manter na crista da onda política.
Falecido na Itália em 1936, Michels teve sua tese comprovada pela burocratização stalinista do Partido Comunista da União Soviética e por tantos outros partidos que, brotados das lutas populares, se transformaram em aparelhos eleitorais de uma oligarquia política.
É possível manter o frescor originário de um partido gestado nas lutas populares, em especial sua democracia interna? Esta a indagação do sociólogo alemão que, desiludido, acabou próximo ao fascismo italiano.
Muitas questões levantadas por ele continuam sem respostas. Como articular, dentro de um mesmo partido, diferentes tendências ideológicas? Como assegurar o controle democrático da direção partidária pelas bases? Como evitar que a direção inverta o rumo e passe a tornar a base submissa às suas determinações? Como as bases podem dispor de canais pelos quais interfiram efetivamente nas decisões da cúpula partidária?
Gramsci se debruçou sobre essas questões. O desafio de encontrar respostas o inquietava. Embora defendesse a democracia partidária, admitia que, para conquistar um Estado verdadeiramente democrático, seria necessário “um partido fortemente centralizado” (“Maquiavel, a política e o Estado moderno”).
Democracia é como roupa – todos usam, mas cada um adota um figurino diferente. Como testemunha a atual conjuntura global, em nome da democracia se praticam as mais execráveis atrocidades.
Há políticos que se suicidam, como Hitler e Vargas. Mas não há políticas suicidas, aquelas que, implementadas, ameaçam a liderança partidária. A “consulta às bases” é feita com a devida precaução, sem que haja o risco de os atuais líderes serem defenestrados do poder pelos filiados ou correligionários.
Michels acreditava que um partido de esquerda só pode sobreviver legalmente na democracia burguesa ao abdicar de seu programa socialista e compactuar com o establishment. Isso, no entanto, só é possível verificar quando o partido ocupa postos de governo. Enquanto permanece fora das esferas de governo, destituído de poder institucional, todo seu discurso de esquerda ecoa como latidos de cão raivoso aos ouvidos da elite que efetivamente governa. O perigo é quando o cão logra abocanhar considerável parcela de poder. Então a elite hegemônica trata de acionar suas artimanhas para neutralizar a força política da esquerda.
A mais determinante é o dinheiro. Manter-se na esfera do poder exige dinheiro, e quem tem não são as bases que votam no partido de esquerda. É a elite que, ainda que não ocupe o governo, jamais deixa de ter poder. E dinheiro em eleição significa investimento. Ninguém investe para perder dinheiro.
Neste ano de 2024, cada um dos 513 deputados federais receberá R$ 19.428.112,42 em emendas parlamentares. Os de direita costumam usar essa fortuna para multiplicar seus votos e recursos, como o deputado que indaga do prefeito de sua base eleitoral o que deseja. Cinco escolas, responde o prefeito. Sem problemas, desde que o deputado indique a empreiteira e tenha o controle da licitação fajuta para assegurar recursos à sua próxima campanha eleitoral.
Os partidos de esquerda não podem ignorar a mídia. Não se ganha eleição com panfletos xerocados. Nem com discursos na praça da cidade. Exigem-se marqueteiros que dominem os segredos de sedução do eleitor. E marqueteiros custam caro.
Portanto, não há como negar o profetismo político de Robert Michels ao defender a tese, até agora confirmada pela história, de que todo partido de esquerda que insiste em disputar espaço na institucionalidade burguesa termina por ser cooptado por ela, em vez de transformá-la.
Quem diz organização, diz tendência para a oligarquia, observa Robert Michels. A mecânica interna da organização tende a ser considerada mais importante do que a atuação da base militante. Esta passa a trabalhar para sustentar aquela, inclusive financeiramente. Aos poucos, o corpo dirigente de profissionalizados se deixa absorver pelas tarefas de administração e abandona o trabalho de emulação, que consiste em aprimorar a educação política e priorizar os valores éticos. E a disputa de poder dentro da organização secciona-a, horizontalmente, em tendências e facções. Do ponto de vista vertical, o partido se reduz a uma minoria dirigente que se impõe à maioria dirigida.
“Teoricamente o chefe não é mais do que um empregado, submisso às instruções que recebe da base”, observa Michels. “Sua função consistiria em receber e executar as ordens desta última, da qual é apenas um órgão executivo. Mas, na realidade, à medida que a organização se desenvolve, o direito de controle reconhecido às bases torna-se cada vez mais ilusório. Os filiados têm de renunciar à pretensão de dirigir ou mesmo supervisionar todos os assuntos administrativos.”
É essa distorção, da qual em geral os partidos de esquerda não escapam, que possibilita reduzir ou até mesmo extinguir o controle democrático das bases. E a direção trata de ampliar o número de filiados que lhe reforce o poder, sem critérios de formação política, identificação ideológica e análise da vida pregressa.
Segundo Proudhon, os representantes do povo, mal alcançam o poder, já se põem a consolidar sua força. Envolvem incessantemente suas posições com novas trincheiras defensivas até conseguirem libertar-se completamente do controle popular. É um ciclo natural percorrido por quase todo poder: emanado do povo, acaba por se colocar acima do povo.
A cabeça pensa onde os pés pisam. Um antídoto aos riscos apontados por Michels é a profunda ligação com os segmentos populares, o trabalho de base, a capacidade de ouvir críticas e se submeter à soberania da militância. E, sobretudo, não trocar o atacado pelo varejo – um programa de democracia verdadeiramente popular, tanto em nível político quanto econômico.
Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros.