Maria José de Queiroz (1934-2023) pediu que eu ficasse de pé diante da classe. Colégio de Aplicação da UFMG, Belo Horizonte, 1961. Professora de francês, 27 anos, era de uma beleza constrangedora, não dava vontade de parar de contemplá-la. Mas não havia como fazê-lo de perto, pois tinha o estranho costume de, ao ingressar na sala, exigir que alunas se sentassem da metade para frente e, alunos, da metade para trás.
- Fale sobre Alfred de Musset – pediu ela.
Cada aluno, como dever de casa, havia escolhido um escritor francês. Eu não tinha muito simpatia pela poesia romântica de Musset, teria preferido escolher Victor Hugo, cujo “Os miseráveis” me alentava na militância estudantil, ou Émile Zola, que ousara viver meses em uma mina de carvão para escrever “Germinal”. Outros, porém se haviam adiantado às minhas preferências.
Para a dissertação oral, eu havia escolhido o poema “Le rideau de ma voisine”, da obra “Les Nuits”, em tradução portuguesa de Lisboa, que meu pai possuía em sua biblioteca. Tão logo iniciei a recitação, fui interrompido pela professora:
– Quero que fale em francês.
– Em francês não sou capaz.
Soubesse e tivesse coragem, eu teria expressado perante a encantadora mestra este verso de Musset: “Je sens mon coeur palpiter” (Sinto meu coração palpitar).
– Você é preguiçoso, não gosta de estudar.
– Quem aqui na classe fala francês? – desafiei, embora a observação dela não fosse totalmente injusta, pois desde os 13 anos a militância estudantil me absorvia.
Para comprovar que nem todos eram negligentes como eu, que mais se dedicava a reuniões que aos estudos, ela escalou meu colega, Olívio Tavares de Araújo (mais tarde, renomado crítico de música), o mais culto da classe, e que falava francês fluentemente. De pé, Olívio retrucou:
– Também não sei – disse por mera solidariedade a mim, o que selou nossa amizade.
Indignada, Maria José de Queiroz interrompeu a aula e se retirou da classe. Pouco depois, fui chamado pela diretora Alaíde Lisboa (irmã da poeta Henriqueta Lisboa).
– A professora Maria José acaba de me comunicar que se recusa a entrar em classe enquanto você estiver presente – disse ela.
– Quer dizer que estou expulso?
– Não diria isso. E fique tranquilo, tenho como transferi-lo de colégio.
Em pleno mês de setembro, com o ano didático avançado, fui transferido para o Colégio Municipal, onde a dificuldade de me atualizar no currículo me custou a única reprovação em 22 anos de bancos escolares.
A vida puxou a sua linha do tempo. No ano seguinte, mudei para o Rio, onde terminei o colegial e ingressei na Faculdade de Jornalismo da Universidade do Brasil. Fiz-me frade dominicano, virei jornalista, obcecado pela literatura. Dois professores de Língua Portuguesa me haviam dito que eu só não seria escritor se não quisesse. Sem pretensões de virar autor, preferi as redações.
Aderi à resistência à ditadura militar e duas vezes estive preso, em junho de 1964, e de novembro de 1969 a outubro de 1973. Nesse segundo período escrevi inúmeras cartas que, reunidas, se tornaram meu primeiro livro, “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), editado primeiro na Itália, em 1971. A edição brasileira completa saiu em 1974, pela Civilização Brasileira.
Em 1981, Maria José de Queiroz lançou, também pela Civilização Brasileira, “A literatura encarcerada”. Considero uma obra clássica, na qual a autora analisa inúmeros escritores que passaram por prisões e, ainda assim, ousaram resistir pela literatura, como Dante, Galileu, Cervantes, Antônio Vieira, Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Augusto Boal, Mário Lago e Flávia Schilling, entre outros. “Os corpos podem ser privados de sua liberdade de ir e vir, mas o espírito, não” – frase síntese do ensaio que figura na contracapa da primeira edição.
No livro, a autora não poupa elogios às minhas “Cartas de prisão”, aliás o primeiro livro do gênero publicado no Brasil no período da ditadura militar implantada em 1964. Escrevi-lhe agradecido, via editora, e nunca soube se recebeu. Ao longo da vida alimentei uma veleidade que, agora, já não posso realizar: comparecer a uma noite de autógrafo de Maria José de Queiroz, entrar na fila e, ao me aproximar dela, que indagaria meu nome, responder:
– A quem a senhora prefere dedicar: a Frei Betto, que elogiou em seu “A literatura encarcerada”, ou ao Carlos Alberto, que expulsou do Colégio de Aplicação.
Acredito que ela jamais associou os dois nomes à mesma pessoa.
Deus a tenha.
Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.