O ano, se bem me lembro, era 1955. Nas férias de verão, Nando, treze anos, e eu, onze, fomos enviados por meus pais à casa de Isá Guinle Paula Machado Libanio e Nelson Libanio, no Rio. Nelson era primo em primeiro grau de minha mãe. Assemelhava-se a Omar Sharif pelo porte alto, os cabelos pretos cheios, o rosto encorpado. Trazia um bigode bem cuidado e falava manso, com entonações abertas.
Filho de meu tio avô, Samuel Libanio que, em Minas, ensinou medicina a Guimarães Rosa e Juscelino Kubitschek, Nelson seguiu a carreira do pai e jamais abandonou o consultório. Terminado o curso, a formatura estendeu-se em viagem à Europa. No correio de Paris, esbarrou em Isá, moça franzina cuja aparência não denunciava sua origem aristocrática. Da língua comum nasceu o encanto e o amor os fez marido e mulher.
Isá, entre irmãos, era a única filha de Celina Guinle e Lineu Paula Machado. Sua fé cristã, apurada pela ótica francesa, livrou-a dos salões e das futilidades. Nutria-se de Maritain, De Lubac, Mounier, a ponto de convencer a família a investir numa editora que divulgasse no Brasil o que havia de mais avançado na teologia europeia: a Agir.
Quem visse Isá e Nelson juntos juraria que ele era o nobre e ela, a plebeia. Garboso, gestos comedidos, ele fumava com o charme de Humphrey Bogart em Casablanca. Trajava ternos brancos de linho ou casimira, e acalentava a mineirice que o distanciava de ambições e enlevos sociais.
Os óculos de Isá adelgavam ainda mais seu rosto fino e acentuavam sua vocação intelectual. Trazia o sorriso sóbrio, porém radiante, de uma luz que refletia sua consistência de espírito. Seus valores morais sobrepujavam, e muito, os pecuniários. Era módico o conforto da casa em que habitavam em Botafogo. Mormente se comparada aos requintes do palacete neoclássico da rua São Clemente, dotado de elevador e capela, hoje transformado em Casa Firjan. Ali crescera Isá.
O Vera Cruz, trem que ligava Belo Horizonte ao Rio, todo fim de ano trazia Nando e eu à acolhida do casal, na rua Guilhermina Guinle. A casa em que vivia, em estilo moderno, tinha dois pavimentos. No térreo, áreas sociais e, acima, suítes e quartos. Entre a sala de jantar e o jardim, retalhado pela piscina, um alpendre forrado de plantas. Era o melhor lugar da casa. Ali, refestelado em cadeiras de vime, dei minhas primeiras tragadas. Não resisti à tentação das cigarreiras de prata abarrotadas de cigarros Kent.
Nando e eu, na noite de Natal, íamos à missa do galo na matriz de São João Batista, na rua Voluntários da Pátria. Não era como hoje, que mais parece missa da galinha ou do pinto, celebrada muito antes da meia-noite. Culpa da falta de fé, dos bandidos ou da nossa ansiedade de abrir os presentes e devorar a ceia? O espírito litúrgico, mais enraizado, dava importância às festas do calendário cristão.
Missa do galo sem comunhão era aniversário sem bolo. Confessávamos ao padre os escrúpulos, o despertar do sexo, pequenas mentiras, birras que ficavam na conta de brigas. Três pai-nossos, três ave-marias e pronto!, estávamos reconciliados com Deus, malgrado o débito com o purgatório.
Mandava a Igreja que se fizesse jejum pelo menos três horas antes de se aproximar da mesa eucarística. Exceto água. Jejum na adolescência era um suplício, sobretudo naquela casa equipada com três geladeiras repletas de fiambres, queijos, compotas, sorvetes, doces e geleias. Quem sabe o sacrifício não valesse mil anos de indulgência!
Para bons quitutes, Nando tinha faro pantagruélico. Enamorou-se de uma torta coberta de chocolate que desfrutava lugar de destaque na geladeira da copa. Fomos à missa com a torta a aguçar-nos imaginação e apetite. O rito era em latim e o padre celebrava de costas à assembleia. Fora a beleza dos cânticos, nada distraia-nos da expectativa do maná que nos aguardava em casa. Se a comunhão trazia o céu à Terra, a torta com certeza nos remeteria da Terra ao céu. Pronunciado o Ite missa est, saímos céleres pela noite quente de Botafogo, onde o que havia de mais alto, abaixo das estrelas, eram as copas frondosas das árvores.
Passava de uma da madrugada quando fomos abrir os presentes. Isá, já recolhida, gritou do quarto: “Não deitem sem lanchar”. Nando retirou da geladeira nossa maçã do Paraíso e, solene, pousou-a sobre a mesa da copa. O Menino Jesus já havia nascido, o galo cantado, os sinos repicados e as ceias devoradas. Restava apenas saciar o nosso abissal apetite juvenil.
Cortou-se a primeira fatia: um creme. Várias camadas multicores, um bolo assorvetado entremeado de frutas cristalizadas e encharcado em licores. Veio a segunda: agora sim, o paladar, apaziguado, apreciava melhor. Não era uma simples torta. Era o manjar que os reis magos deviam ter ofertado no presépio. A cobertura crocante de chocolate derretia na boca e o olfato impregnava-se desse perfume de baunilha que nos remete à calda espessa e quente. Chocolate cheira a aconchego; agasalha-nos por dentro. A massa leve evolava-se na língua que, atenta, atinava com o licor, as nozes, os pistaches, as tâmaras e as cerejas.
Não falávamos. No silêncio da madrugada, a curva do doce encolhia-se, fatia a fatia. Há que ser educado! Éramos hóspedes e convinha deixar um pedaço, o bastante para o casal anfitrião provar à sobremesa. Fomos dormir o sono dos eleitos.
Acordou-nos um grito. O sol ia alto, mas tínhamos ainda os olhos pesados. Clamor de perplexidade e desolação. Era Isá. Foi a única vez que a ouvimos estarrecida. Não vimos; enfiamos a cabeça nos lençóis.
A torta era a sobremesa que o casal levaria ao almoço de família no palacete da São Clemente. Viera de Paris, encomendada do Maxim’s, aos cuidados da Air France. O glutão do Papai Noel passara e não resistira…
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Mario Sérgio Cortella, de “Sobre a esperança” (Papyrus), entre outros livros.