Ignoro se a pandemia nos deixará o legado de um mundo melhor, menos competitivo e desigual, mais solidário e justo. Tenho dúvidas. Mineiro, sou desconfiado…
No século passado, a humanidade passou por duas grandes guerras, bombas atômicas, terrorismo, aids, crises financeiras, e nem por isso ficou melhor. A desigualdade social se agravou e a autocracia renasceu.
Temo que a tendência, agora, seja o fortalecimento da xenofobia. As nações metropolitanas chamarão de volta a seus territórios suas empresas espalhadas mundo afora, em especial na China. O unilateralismo esgarçará a globalização, como o Brexit já antecipa.
A União Europeia verá rasgadas muitas de suas costuras, traumatizada pela falta de solidariedade entre seus diversos governos no início da pandemia. Os EUA reforçarão seu belicismo imperialista e, além de aumentar sua competitividade com a China, tentará dominá-la.
Pode ser que eu me equivoque e a humanidade faça jus ao legado de seus inúmeros mortos pela Covid19, e reverta sua idolatria ao capital e indiferença aos direitos humanos. Queira Deus.
Nas relações pessoais, entretanto, pressinto mudanças significativas. Enumero algumas. Reduziremos o contato físico nos cumprimentos. Quem sabe imitaremos os japoneses e adotemos apenas a leve inclinação do corpo, exceto com pessoas de nossa intimidade. Quando resfriados, usaremos máscaras. Seremos mais precavidos em frequentar aglomerações.
Com certeza o isolamento social nos deixará boas lições. Poderemos trabalhar mais a partir de casa e curtir melhor a vida familiar. Seremos menos dependentes de faxineiras e cozinheiras. Muitas tarefas desempenhadas por elas serão assumidas pelo núcleo familiar. Usaremos mais os serviços de entrega em domicílio.
Veremos multiplicar o número de cozinheiros e cozinheiras amadores, adestrados por força da reclusão. Estaremos muito mais atentos aos cuidados da saúde, em especial à higiene pessoal, como o hábito de lavar as mãos, e da limpeza dos locais de convivência e trabalho.
Enfim, espero que levemos à prática as lições de grandes sábios, como Buda e Sócrates. O primeiro nos ensinou que rico não é quem muito possui, e sim quem de pouco precisa. E Sócrates, ao percorrer as ruas comerciais de Atenas, dizia observar quando coisa existia que ele não precisava para ser feliz.
Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.