O que se entende por “humanismo”? Trata-se de uma corrente intelectual dos séculos XIV a XVI, que enfatizava a dignidade do ser humano, inspirada no sucesso do livro “A dignidade do homem” (1496), de Giovanni Pico della Mirandola. Essa corrente suscitou melhor compreensão a respeito das diferenças entre os seres humanos, o valor da existência individual, e despertou para a necessidade de se impor limites aos poderes político e religioso.

Toda a história da humanidade é marcada pela coexistência entre joio e trigo, humanismo e barbárie, razão e pulsão. A cultura e a consciência de que o outro é também um ser de direitos e exige cuidados são as condições essenciais de subsistência que impedem que os seres humanos disputem entre si, como feras.

Isso surge de nossa intrínseca espiritualidade, esse movimento de se voltar a si mesmo para descentralizar-se no Outro, como transcendente, e nos outros, como alteridade. Daí a perenidade da Bíblia, dos Evangelhos, do Alcorão, do Tao, do Bhagavad Gita e de tantos livros sagrados ainda tão atuais e que provocam tanto interesse.

Malgrado o otimismo suscitado pelo advento da modernidade, não podemos admitir que o humanismo prevaleceu. Nos últimos 500 anos tivemos o massacre de milhões de indígenas na América Latina e o fluxo escravocrata da África para o nosso Continente, sendo que, no Brasil, o regime escravista durou 350 anos!

Ao lado dos avanços da ciência, como o estudo aprofundado da gênese da espécie humana e a abertura desta Caixa de Pandora chamada mente humana pelas pesquisas de Freud, construímos artefatos bélicos, como bombas nucleares, capazes de destruir inúmeras vezes toda a vida em nosso planeta.

O neoliberalismo, centrado na acumulação privada da riqueza, disseminou uma ideologia anti-humanista que procura naturalizar as desigualdades sociais, as diferenças étnicas, enfim, a luta de classes. Isso, além de pobreza e miséria, gera uma patologia social, a depressão que resulta do desenraizamento comunitário, da perda de senso coletivo.

Todas as críticas que o papa Francisco faz ao capitalismo não derivam, propriamente, de uma perspectiva ideológica, e sim de sua visão predominantemente eco-humanista. O projeto civilizatório iniciado na Europa nos séculos XV e XVI já ultrapassou os limites toleráveis. As duas filhas diletas da modernidade, a ciência e a tecnologia, deixaram de centrar seus objetivos no bem-estar do ser humano para almejar mais e mais lucros, mais e mais domínio de uns sobre os outros.

O mito da imaculada concepção da neutralidade cientifica ruiu quando os EUA jogaram, em 1945, duas bombas atômicas sobre as populações inocentes de Hiroshima e Nagasaki. A ciência e a tecnologia se puseram a serviço da morte. Isso agravado pela devastação da natureza.

A falência do atual modelo civilizatório, hegemonizado pelo capitalismo, tem sua maior evidência em dois fatores: a destruição dos ecossistemas e a exclusão de mais de 1 bilhão de seres humanos de condições dignas de vida, condenados à pobreza e à miséria.

Nesse sentido, buscar um novo projeto civilizatório e se opor ao capitalismo é uma questão ética. A progressiva desumanização do ser humano se dá por uma visão reducionista que reforça o individualismo alheio à transcendência e indiferente à preservação ambiental, segundo parâmetros dos pilares da racionalidade moderna. Daí a importância de um novo humanismo dotado de espiritualidade pós-religiosa, laica, profundamente centrada na alteridade diante do próximo e da natureza.

Dois bons exemplos dessa nova visão humanista são o bem viver dos indígenas andinos e a ecologia integral.

O Renascimento – com Erasmo e os iluministas Diderot, Voltaire e Rousseau; a irreverência do Marques de Sade e a psicologia de Freud – exaltou a liberdade de homens e mulheres se rebelarem contra dogmas e opressões; colocar em discussão toda certeza, mandamento ou valor; e proclamarem a liberdade de emancipar espíritos e corpos. Mas será que os princípios éticos que regiam a convivência social quando ainda o “nós” não dera lugar ao “eu” foram preservados ou subvertidos?

Penso que no bojo da emancipação humana, liberta de deuses, papas e reis, a afirmação do indivíduo resultou no mais exacerbado individualismo. O desejo suplantou a razão e, hoje, a humanidade corre o risco de ficar refém de outro poder que se apresenta de uma forma mais sutil e corrosiva de nossos valores: a automação. As novas tecnologias digitais são as coleiras virtuais que nos sequestram do coletivo e nos mantêm confinados em nichos nos quais a diversidade é encarada com ódio e a unanimidade dos parceiros celebrada como pós-verdade.

Há que resgatar o humanismo de Francisco de Assis, que buscava não “tanto ser compreendido, mas compreender”, “não tanto ser amado, mas amar”.

Dante Alighieri, em sua “Divina Comédia”, fundou uma teologia ao demonstrar que o humanismo existe enquanto transcendemos a linguagem através da invenção de novas linguagens: como ele mesmo fez ao escrever em um novo estilo a língua italiana corrente e inventar neologismos. “Ultrapassar o humano no humano”, diz Dante, será o caminho da verdade. Amarrar – no sentido de “unir” – o divino com o humano. Algo semelhante ao que fez o nosso Guimarães Rosa em “Grande sertão, veredas”.

Depois do Holocausto e do Gulag, e dos 350 anos de escravidão e o massacre de 70 milhões de indígenas (Bartolomeu de las Casas), o humanismo tem o dever de lembrar os homens e as mulheres que padeceram como meras vítimas.

Reproduzo aqui o texto que escrevi em homenagem a Walter Benjamin em “A arte de semear estrelas” (Rocco). Ele nos alertou sobre a importância de jamais esquecer as vítimas:

“Teu anjo insiste em olhar para trás. E vê o que não vemos, a não ser pelos olhos dele: o vasto campo dos corpos anônimos, dos carpinteiros dos navios de Alexandre Magno, dos ceramistas das catedrais medievais, dos servos de todos os reinos, majestades e potestades. É ali que a história encontra seu berço, seu texto, seu preço. É naqueles corpos esquecidos, oprimidos, esquartejados, vencidos e varridos, que tua memória, como o milagre descrito por Ezequiel, rejunta os fragmentos e refaz o corpo, o corpo da história, o corpus denso e irremovível da verdade.”

“Bem sabes que é preciso a força da embriaguez para levar a cabo uma revolução, pois teu anjo é lúcido e impotente. Impossível retornar ao passado, mas trata de resgatá-lo no presente, ainda que as vítimas prossigam sem redenção, exceto a da memória reverenciadora. Muitos dirão que são conjunturas, sacrifícios inevitáveis, pequenos assassinatos que justificam grandes causas. Mas tu, sentinela da porta do Éden, não permitas que nos deixemos seduzir pelas maçãs rubras que nos são estendidas, perfumadas, por aqueles que, em nome do progresso, preferem cultuar cemitérios.

“És tu a luz de nossa razão neste tempo de tanta estultice e irracionalidade. Nele tua obra nos faz querubins, serafins, benjamins.”

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros..