Seria espantosa uma versão atual de 1984, de George Orwell, em que toda a população mundial fosse proibida de sair de casa, enviar os filhos à escola, ter contato com os entes queridos que não vivem sob o mesmo teto. Um governo ditatorial que fechasse todas as fronteiras do país, controlasse cada cidadão pelo celular e soubesse exatamente qual a porcentagem de pessoas que ontem foram à rua. E cuja polícia multasse ou prendesse quem fosse encontrado fora de casa sem justificativa aceitável. No entanto, tudo isso a Covid-19 tornou realidade.
Como declarou Yuval Noah Harari, “os governos que pouparam gastos nos últimos anos, reduzindo os serviços de saúde, agora gastam muito mais por causa da epidemia“ (El País 22/03/20).
Agora se calam os que ardorosamente defendiam as privatizações e as políticas de austeridade. E palavras outrora estigmatizadas voltam a aparecer no noticiário econômico: nacionalizar, repatriar, reindustrializar. Até a palavra solidariedade soa na boca dos arautos do sistema.
As perspectivas de futuro não são animadoras. Dos 195 países do mundo, 170 terão crescimento negativo em 2020. Mais 250 milhões de pessoas devem se somar às atuais 820 milhões que passam fome. Cenário mais drástico do que em 1929. Empresários e empregados se perguntam de que haverão de morrer, de infecção ou falência.
Em meio aos prognósticos negativos, a natureza agradece. O ar está mais limpo, há menos lixo nas cidades, a vegetação se revigora. E a Pax Coronavirica faz as armas se calarem na Líbia, na Síria, no Iêmen e no Afeganistão. Nem o Conselho de Segurança da ONU teria tanta autoridade para suspender guerras.
Ainda sabemos pouco sobre o Covid-19. Muitas perguntas permanecem sem respostas. Por que os idosos estão mais ameaçados que os jovens? Por que atinge mais homens que mulheres? Os assintomáticos podem vir a contrair o vírus e disseminá-lo? Os curados podem ser de novo infectados?
Existem sete tipos de coronavírus. Quatro causam gripes comuns. Os três mais recentes produzem sintomas letais, como a SARS (síndrome respiratória aguda grave), surgida em 2002; a MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio), de 2012; e, agora, a Covid-19.
O que os cientistas se perguntam é por que o vírus atual se dissemina tão rápido e supera todas as previsões das autoridades sanitárias do mundo. Por que a SARS e a MERS não se espalharam em escala planetária como agora?
Os vírus são enigmáticos. Não estão vivos nem mortos. Não estão vivos porque são incapazes de se reproduzir por si mesmos. Não estão mortos porque penetram em nossas células e se replicam. Ao ingressar na primeira célula, cada coronavírus gera até 100 mil cópias de si mesmo em 24 horas, segundo o Centro Nacional de Biotecnologia da Espanha. Os vírus procuram sempre um modo de burlar o nosso sistema imunológico.
O que é peculiar na Covid-19 é a sua propagação silenciosa, sem levantar suspeitas. Nos primeiros dias a pessoa infectada não demonstra nenhum sintoma de enfermidade. E pode nem ter sintomas e, ao mesmo tempo, repassar o vírus a outras pessoas.
As utopias são matéria de ficção. Em meio à pandemia, soam opiniões de que a humanidade sairá melhor dessa crise, cujas lições são muito duras. Haverá mais cooperação, menos gastos bélicos e mais com proteção social, melhor infraestrutura sanitária e, quem sabe, uma renda mínima universal para cada pessoa. Tomara que a ficção se torne realidade.
Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros.