Se a religião, como assinalou Karl Marx, é “o coração de um mundo sem coração” e “o suspiro da criatura oprimida”, é, portanto, uma forma de protesto diante do mundo real. É, para a pessoa religiosa, sua teoria geral do mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica dentro da cultura popular.
Pergunte a qualquer trabalhador sem escolaridade – cozinheira, camponês, faxineiro -, o que pensa do mundo, da vida e da morte. Com certeza lhe dará uma resposta tecida em categorias religiosas. Afirmação semelhante seria feita anos depois por Nietzsche, para quem o Cristianismo é um platonismo para o povo.
Fidel me afirmou na entrevista que relato no livro Fidel e a religião: “Se você me diz que nas atuais condições da América Latina é um erro acentuar as diferenças filosóficas com os cristãos que, como parte majoritária do povo, são as vítimas massivas do sistema, então eu diria que você tem razão. Embora o prioritário fosse, a meu ver, concentrar o esforço em conscientizar para unir em uma mesma luta todos os que carregam uma mesma aspiração de justiça.’
“E muito mais lhe dou razão quando se observa a tomada de consciência dos cristãos ou de importante parcela deles na América Latina. Se partimos desse fato e das condições concretas, é absolutamente correto e justo exigir que o movimento revolucionário tenha um enfoque adequado da questão e evite, a todo custo, uma retórica doutrinal que entre em choque com os sentimentos religiosos da população, inclusive de trabalhadores, de camponeses e de setores médios, o que só serviria para ajudar o próprio sistema de exploração.’
“Eu diria que, frente a uma nova realidade, deveria haver uma mudança no tratamento da questão e nos enfoques da esquerda. Nisso concordo inteiramente com você. Para mim, é inquestionável. Mas durante um longo período histórico, no qual a fé foi utilizada como instrumento de dominação e de opressão, há lógica no fato de os homens que desejaram mudar esse sistema injusto terem entrado em choque com as crenças religiosas, com aqueles instrumentos e com aquela fé.”
“Creio que a grande importância histórica do que você denomina Teologia da Libertação, ou Igreja da libertação – como preferir -, é precisamente sua profunda repercussão nas concepções políticas dos cristãos. E eu diria algo mais: significa o reencontro dos cristãos de hoje com os cristãos de ontem, dos primeiros séculos, quando surgiu o cristianismo depois de Cristo.”
Com o objetivo de resgatar o Cristianismo primitivo, valorizado por Engels e Fidel, publiquei, em agosto de 2022, o livro Jesus militante – o Evangelho e o projeto político do Reino de Deus, no qual defendo, baseado em análise detalhada do Evangelho de Marcos, o primeiro a ser escrito, que Jesus não veio fundar uma religião, o Cristianismo, ou uma Igreja, a cristã. Veio nos propor um novo projeto civilizatório, político, fundado em dois pilares: nas relações pessoais, o amor; nas relações sociais, a partilha dos bens da natureza e daqueles produzidos pelo trabalho humano. A esse projeto, ele denominava Reino de Deus em oposição ao reino de César, sob o qual vivia. Por isso, acusado de sedição, sofreu prisão política e foi condenado à pena de morte na cruz.
A experiência socialista comprovou, entretanto, que mesmo combatendo a “miséria real” a religião não desaparece. Como não desaparecem outros fatores que transcendem a razão humana: a arte e o amor. Até porque tanto o marxismo quanto as religiões são sistemas de sentido. Pretendem explicar a vida e a história humanas, assim como o capitalismo. A diferença é que as religiões são sistemas de sentido mais abrangentes, vão além do que pode ser esclarecido pela ciência e pelos paradigmas da estética; explicam desde a importância do perdão na reconciliação de duas pessoas que se desentenderam até a origem do Universo e da vida e o que se passa após a morte.
Fidel declarou na entrevista: “Quando Marx criou a Internacional dos trabalhadores, havia entre eles muitos cristãos. Também na Comuna de Paris havia muitos cristãos entre os que lutaram e morreram. Não há uma só frase de Marx excluindo aqueles cristãos, dentro da linha ou da missão histórica de levar adiante a revolução social. Se vamos mais além e recordamos todas as discussões em torno do programa do Partido Bolchevista, fundado por Lênin, você não encontra uma só palavra que exclua os cristãos do Partido. A principal exigência é a aceitação do programa do Partido como condição para ser militante. De modo que aquela frase tem valor histórico e é absolutamente justa em determinado momento.’
“Neste momento, podem existir circunstâncias em que ela ainda seja expressão de uma realidade. Em qualquer país no qual a hierarquia católica ou a de outra Igreja esteja estreitamente associada ao imperialismo, ao neocolonialismo, à exploração dos povos e dos homens e à repressão, não devemos nos surpreender que alguém repita que “a religião é o ópio do povo”.
Ao contrário de todas as previsões iluministas, o fenômeno religioso não apenas impregna a cultura de povos do mundo inteiro, como se mostra em ascensão. E as forças de direita se apegam resolutamente a ele por reconhecerem seu alcance popular, o que facilita a manipulação das consciências rumo à naturalização das desigualdades sociais, à exaltação da meritocracia individual e à abnegação em situação de opressão.
Neste sentido, a religião disseminada pela direita é, sim, um ópio que tem por objetivo desmobilizar as forças populares potencialmente revolucionárias, de modo a postergarem para a eternidade o direito a uma vida digna e feliz.
Na América Latina, o fenômeno se apresenta sobretudo pelo fundamentalismo cristão de Igrejas evangélicas e setores do catolicismo. Os dados mostram que nosso Continente, tradicionalmente católico, tende a ser, agora, predominantemente evangélico de perfil protestante neopentecostal. Portanto, devidamente legitimador do sistema capitalista.
O progressismo das Comunidades Eclesiais de Base e de seu fruto mais expressivo, a Teologia da Libertação, tão vigentes entre as décadas de 1970-1990, refluiu sob os 34 anos de pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI. O papa Francisco se empenha em recuperar o terreno perdido, embora saiba que, hoje, ele é a cabeça progressista de um corpo estruturalmente conservador.
Por sua vez, a esquerda mundial se viu abalada sob os escombros do Muro de Berlim. Na Europa, ela se esfacelou e amplos segmentos foram absorvidos pelo neoliberalismo. Na América Latina, ela abandonou os propósitos revolucionários para se adaptar a programas políticos sociais-democratas assumidos por partidos e governos progressistas. O pensamento marxista ficou recolhido às bibliotecas e o socialismo, à exceção de Cuba, deixou de ser um objetivo histórico.
A questão que me parece mais importante, na atual conjuntura, é a politização, organização e mobilização dos amplos setores populares, quase sempre impregnados de forte religiosidade cristã. Numa palavra: retornar ao trabalho de base, tão intenso na América Latina nas décadas de 1960 a 1990. Retirar Paulo Freire das prateleiras de livros. Desafio nada fácil considerando que, hoje, esses setores em muitos países estão sob o comando de pastores e padres fundamentalistas, braços do narcotráfico, milícias ou grupos paramilitares.
Se em nosso povo a porta da razão é o coração e a chave do coração a religião, a esquerda terá que necessariamente abraçar a pedagogia do trabalho popular que leva em conta o fator religioso. O discurso político nem sempre encontra eco nas camadas populares, muitas delas decepcionadas com partidos e governos. A hermenêutica religiosa terá que entrar na pauta da militância de esquerda. Não para manipular consciências, como faz a direita, e sim para reaprender a valorizar a fé das pessoas mais simples e ajudá-las a fazer uma leitura libertadora da Bíblia, considerada por elas Palavra de Deus.
Se em países como Brasil e México a esquerda, para ter êxito, deverá sempre contar como aliadas a Virgem de Aparecida e a Virgem de Guadalupe, em toda a América Latina não há como avançar para superar o capitalismo e implantar uma sociedade socialista sem ter como aliado o companheiro Jesus de Nazaré.
Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens pelo mundo socialista”, entre outros livros.