Em 15 de janeiro deste ano, o presidente Lula sancionou a lei que criminaliza o bullying e o cyberbulliyng, classificando-os “crimes hediondos” cometidos contra crianças e adolescentes. O cyberbulliyng é tipificado como praticado nas redes digitais, aplicativos, jogos online ou “qualquer meio ou ambiente digital”. Agora, no Brasil, quem cometer cyberbulliyng pode ser preso por até quatro anos. A lei impede fiança ou anistia aos criminosos. A pena para indução ou auxílio ao suicídio ou à automutilação vai de dois a seis anos, e pode ser dobrada se o autor for responsável, na internet, por um grupo, comunidade ou bolha.
A edição 2022 do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) constatou que 11% dos alunos entrevistados disseram sofrer bullying com frequência na escola. O percentual de meninas que declarou ter sofrido várias vezes no mês chegou a 22%. Entre os meninos, 26%.
Qual a saída? Somente uma ação coordenada dos governos pode impor limites a essa exploração do imaginário. A ação coordenada de muitos países acertou ao impor limites ao capital ao reduzir a jornada de trabalho e criminalizar a contratação de mão de obra infantil. Acertou ao abolir a escravidão. Acerta agora quando protege as crianças contra a voracidade das mensagens publicitárias. Mas ainda se omite quando se trata de impedir que o mesmo capital explore o olhar e se aproprie dos dados e dos códigos neuronais e pulsionais mapeando o desejo das crianças e dos adultos.
Em seu livro “A superindústria do imaginário – Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível”, Eugênio Bucci afirma que “a obra de Karl Marx nos entrega uma descrição objetiva do caráter do século XIX e da Revolução Industrial. O trabalho infantil grassava nas fábricas de Londres; os capitalistas recrutavam crianças para jornadas que se estendiam por até 18 horas diárias; os pré-adolescentes, a força de trabalho mais barata, davam mais retorno: e Marx viu e descreveu tudo isso.”
“A exploração capitalista mudou de código, mas aí está, embora não se mostre. (…) Nas big techs o grau de exploração da Superindústria do Imaginário chegou a um patamar de tapeações e ocultamentos tão requintado que nem os mais sovinas, sagazes e impiedosos barões da Revolução Industrial ousariam supor.”
“Numa rede social ou num grande site de busca, o ‘usuário’, que imagina usufruir de um serviço que lhe é ofertado em generosa cortesia, é a mão de obra (gratuita), a matéria-prima (também gratuita) e, por fim, a mercadoria (que será vendida, no todo ou em partes, em esquartejamentos virtuais, e nem desconfia da gravidade disso). Nunca o capitalismo desenhou um modelo de negócio tão perverso, tão acumulador e tão desumano.”
Bucci detalha o requintado sistema de exploração. “O ‘usuário’ é a mão de obra gratuita porque é ele quem digita, fotografa, posta, filma e faz tudo. Os conglomerados digitais não precisam gastar um centavo com digitadores, editores, revisores, fotógrafos, cinegrafistas, locutores, modelos, atrizes, roteiristas, nada. Absolutamente nada. O ‘usuário’ trabalha sem parar em frêmitos de gozo, sem cobrar um tostão.
“Não bastasse isso, o mesmo ‘usuário’, além de mão de obra gratuita, é também a matéria-prima, pois as histórias narradas são as dele, os gatos e os pratos de comida fotografados são os dele, os delírios postados, aos quais a Superindústria dá o nome pernóstico de ‘conteúdos’, são os dele.”
“Por fim, o ‘usuário’ é também a mercadoria. A Superindústria o colhe de graça, como se fosse mato espalhado pelo chão, e vai comercializá-lo em seguida, no todo ou em partes, no varejo e no atacado, em sacas ou a granel, a preços trilionários. Os olhos serão vendidos aos anunciantes. Os dados pessoais serão mercadejados com organizações que manipulam eleitorados em favor dos neofascistas.”
“Do ponto de vista ético, o que se passa hoje é pior do que o que se passou na Revolução Industrial. Não, não é exagero. Pensemos por um minuto. O que é o capital que se apropria de 16 ou 18 horas diárias de trabalho de uma criança comparado ao capital que, dois séculos depois, se apropria dos processos mais íntimos da formação da subjetividade de outra criança, durante as 24 horas do dia?“
“O que é o capital que não respeita o esgotamento das forças físicas do corpo humano comparado ao capital que viola todas as fronteiras da privacidade e da integridade psíquica de uma pessoa?”
“O que é o capital que se apossa da mais-valia do trabalhador comparado ao capital que, além da mais valia do olhar, rouba os segredos sobre os medos, suas ansiedades e as paixões daqueles a quem chama cinicamente de ‘usuários’?”
“O que é o capital que extenua até a alma seus operários comparado ao capital que, além de explorar o trabalho, transforma o tempo de lazer em formas não declaradas de exploração e de ainda mais trabalho?”
“O que é o capital que rouba a força muscular de uma criança comparado ao capital que lhe rouba, além da infância, a imaginação que ela poderia ter?”
“O que é o capital que manda a polícia reprimir greves comparado ao capital que se instila no desejo de garotos e garotas, ainda na primeira infância, de matar, lá dentro, qualquer centelha de rebeldia futura?”
“As democracias ainda consideram os meios de comunicação meros distribuidores de ‘conteúdos’, e não meios de produção que empregam o olhar para a fabricação da imagem da mercadoria. Sofremos de um déficit de paradigma teórico.”
“As autoridades reguladoras ainda não assimilaram a verdade evidente de que os meios de comunicação, mais do que um dispositivo de entrega de informação e divertimento, são meio de produção de valor de gozo, que exploram o trabalho do olhar sem remunerar ninguém por isso.”
“Há outras coisas das quais as autoridades nem desconfiam. Elas ainda não compreenderam devidamente que, quando as tecnologias rastreiam e extraem dados dos usuários – como fazem todos os serviços de streaming e todos os sites disponíveis na internet -, engrenagens ocultas corrosivas entram em ação.”
“Os dados coletados gratuitamente pelos conglomerados contêm chaves do desejo inconsciente, de tal maneira que, como já se tornou comum dizer, os algoritmos dispõem de mais conhecimento sobre as predileções dos sujeitos do que os próprios sujeitos.”
“Os dados fornecem uma espécie de mapeamento das pulsões, dos impulsos, dos instintos, dos reflexos, dos ritmos e dos circuitos neuronais de cada indivíduo. Os algoritmos do capital conhecem a fundo os códigos mais íntimos do desejo inconsciente de cada indivíduo, mas esse mesmo indivíduo não conhece nada sobe os códigos secretos dos algoritmos.”
Em resumo: ou os governos estabelecem limites legais para esse modo de produção, ou seguirão cada vez mais limitados.
Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.