Por Nicodemos Sena (*)
Muito já se escreveu sobre a Amazônia, com sua monumentalidade geográfica e humana, sua flora e fauna exuberantes, seu contexto histórico, antropológico, social e político. Quase sempre, no entanto, o portentoso contexto invade o texto e transforma-o em peça meramente folclórica ou imaginativa, fruto de uma “memória enlouquecida”, parafraseando aforismo do poeta Mário Quintana.
Palco de grandes interesses e muitos conflitos, vítima de cobiça e rapina nacional e internacional, o bioma amazônico e seus mais de uma centena de povos e etnias têm sido vítima de agressões, massacres, genocídios, mormente a partir do golpe político de 2016, que abriu alas para a fraudulenta vitória eleitoral do neofascista Jair Bolsonaro, que intensificou a invasão do capital predatório, iniciada com os governos militares em 1964, na Amazônia.
Em tempos de queimadas criminosas e perseguição dos povos indígenas, é um alentador acontecimento a publicação do romance do Frei Betto, “Tom vermelho do verde” (Rocco, 2022, 208 páginas). Trata-se de uma trilha segura para quem quiser percorrer, metaforicamente, os rios e florestas de uma região tão falada e pouco conhecida, sem os exotismos e distorções que quase sempre maculam a literatura feita “na” e “sobre” a Amazônia, tão afetada por seres fantasmagóricos à feição dos íncubos e súcubos transplantados do imaginário do Velho Mundo; ou por hominídeos bestiais em descabeladas aventuras, como no romance “A Amazônia Misteriosa”, do carioca Gastão Cruls (1925); ou por uma escritura grandiloquente, como nos contos de “Inferno Verde”, do pernambucano Alberto Rangel (1908), nos quais a dimensão humana diante da natureza é bastante reduzida, tanto no nível narrativo quanto no nível linguístico, como o prova a excessiva adjetivação do meio físico; ou pela erudição engenhosa do paulistano Mário de Andrade, um “turista aprendiz” como os acima citados, que descola a complexa figura mitológica de Macunaíma de sua origem amazônica e transforma-o, pela via do humor debochado, no degenerado “herói sem nenhum caráter”, que nasce negro, preguiçoso e sensual numa aldeia indígena (!!!) e, após banhar-se em águas encantadas de São Paulo, torna-se branco, louro e de olhos azuis, sendo recebido pela “crítica” como símbolo de um povo em formação.
“Tom vermelho do verde” percorre caminho inverso. Percebe-se, em todo o livro, um esforço, diga-se desde já bem-sucedido, de romper com a visão exótica, deformada e fantasmagórica da “realidade amazônica”, desnudando as intenções e projetos que se ocultam por trás de relações sociais condicionadas por um racismo estrutural e uma ganância sem limites. Já no título, remete-nos ao sangue da nação Waimiri-Atroari derramado sobre o verdejante solo amazônico, como decorrência do avanço de atividades econômicas ilegais, muitas vezes disfarçadas de missão evangelizadora e humanitária, no rastro da estrada BR-174 (Manaus-Caracaraí), que rasgou o território daquela etnia no início dos Anos 70 do século passado, sob o comando do regime militar que infelicitava o país desde 1964. Para os militares, testas-de-ferro do grande capital imperialista e nacional, a Amazônia precisava ser entregue às empresas mineradoras, madeireiras e ao agronegócio para se tornar palco de grandes empreendimentos, fator de progresso, e deixar de ser uma vasta região improdutiva, ocupada por seres primitivos e ociosos (pág. 83).
“Tom vermelho do verde” resgata a tragédia de um povo encurralado e obrigado a constantes movimentos. Sua desesperada luta contra o extermínio soezmente planejado assume aspectos de pesadelo e se apresenta como a personificação do próprio Inferno. “Pais, mães e filhos mortos. Aldeias destruídas pelo fogo e por bombas. Guerreiros resistindo, enquanto famílias corriam pelos varadouros à procura da mítica aldeia de Wanakta. A floresta rasgada e os rios invadidos por gente agressiva e inimiga. Essa a vivência do povo Kinja (Waimiri-Atroari) desde que a construção da rodovia BR-174 violou o seu território” (pág. 108).
Fica-se sabendo que os militares não se contentavam em atirar e matar pessoas, também jogavam bombas incendiárias sobre as aldeias. Genocídio perpetrado com método e equipamentos modernos, versão atualizada das câmaras de gás do regime nazista: “Já tinham chegado visitantes do Camanaú e do Baixo Alalaú. Aldeias do Norte vinham a caminho. Com festa começada, muita gente reunida, na hora do sol forte todos ouviram ronco de avião. A curiosidade fez muitos saírem das malocas. A criançada se ajuntou no pátio. O avião baixou, baixou, como gavião-real mergulha do céu para agarrar a presa, e derramou pó. Todos morreram, com nariz e garganta ardidos, e muito calor no corpo” (relato do indígena Mawy).
A rodovia BR-174 foi oficialmente inaugurada em 6 de abril de 1977, com a presença do vice-presidente da República, general Adalberto Pereira dos Santos. A imprensa foi uníssona em exaltar os “heróis” que tombaram ante a “crueldade assassina” dos Waimiri-Atroari. E nenhum registro de morte de indígenas, embora mais de vinte aldeias tenham desaparecido. A razia “civilizada” subtraiu trinta mil hectares de terras e reduziu a população Kinja de três mil para menos de mil pessoas. Ninguém do governo lamentou a tragédia.
Pelo contrário, o presidente da FUNAI, órgão criado para cuidar das populações indígenas, coronel João Carlos Nobral Vieira, expressou toda sua ojeriza aos povos originários: “Índios são estorvos civilizatórios. Se dermos ouvidos a eles e a seus porta-vozes, teremos que trocar o nosso jargão Pra frente, Brasil! por Brasil, marcha a ré!”.
“Tom vermelho do verde” ensina e denuncia uma situação opressiva, mas também cativa desde a primeira linha, e, desse modo, cumpre as duas funções mais importantes de uma obra de arte: a lúdica e a pedagógica. E o faz porque o conteúdo encontrou sua melhor forma de expressão.
Quanto a isso, o romance está pontilhado de exemplos: O “brilho dos olhos” do coronel Luiz Fontoura, “dois diminutos globos a espelhar ansiedade, ambição, essa voracidade que brota do coração estufado de cobiças (…), o olhar de expressão rútila e cruel”. É o mesmo olhar dos aventureiros e malfeitores que, em missão “civilizatória” e “cristã”, em cinco séculos de saques e morticínios, excitados pelo desvario do Eldorado, imaginaram que o seu “pote de ouro” estava enterrado em subsolo amazônico.
A imagem da imensidão da floresta amazônica sendo “rasgada de Sul a Norte” por estradas associa-se poderosa à imagem da mata deflorada à força, como mulher virgem. Penetrar fundo, com violência, rasgando estradas e por elas levar o sêmen do “progresso” e do “desenvolvimento”.
“A testa calva, o nariz adunco, o queixo proeminente” do general Aurélio de Lira Tavares, Ministro do Exército, lembra, por sua vez, as feições de uma ave de rapina. O coronel Luiz Fontoura, torturador em Brasília, “já não teria mais que submeter seus ouvidos aos urros de prisioneiros dependurados no pau-de-arara, impelidos à dança macabra provocada pelos choques elétricos, nem suportar o cheiro de merda, urina e sangue impregnado nos galpões onde guerrilheiros e camponeses eram seviciados para revelar o que sabiam e não sabiam”.
O coronel, designado para comandar a construção da BR-174, deixaria de dilacerar o corpo dos prisioneiros políticos da ditadura e passaria a rasgar a floresta amazônica e a carne de sua pobre gente.
Outra imagem poderosa é a da barata que se move de forma imprevisível aos pés do sertanista Vitorino Alcântara e monopoliza os olhos do coronel torturador Luiz Fontoura, que tenta adivinhar que rumo o inseto tomaria, metáfora perfeita da incompatível relação entre a mentalidade escravagista da nossa elite política-econômica-militar e as populações e etnias marginalizadas do Brasil, vistas como inimigas da “civilização” e do “progresso”, a serem eliminadas, a qualquer custo, da face da terra.
Afinal de contas, “o que pode um povo primitivo e ignorante contra o poder do capital?”, é a frase final do romance, proferida pelo major reformado Paulo Cordeiro, presidente da Holos global Investimentos, representante de empresas estrangeiras interessadas em explorar as riquezas da Amazônia, em seu luxuoso gabinete na capital amazonense, tendo a foto do presidente Jair Bolsonaro exposta na parede atrás da poltrona revestida de pele de onça.
* Nicodemos Sena é escritor e jornalista paraense radicado em São Paulo, autor de “A Espera do Nunca Mais – Uma Saga Amazônica” (3ª edição, 2020, Kotter Editorial, Curitiba, PR, Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos).