A primeira vez que me deparei com o conceito de utopia foi ao estudar Durkheim no curso de antropologia da USP, na década de 1960, embora tivesse lido, sem muito proveito, confesso, a “Utopia” de Thomas Morus, do século XVI.

Depois, com Marx e Engels, esta palavra se ampliou em meu horizonte político. E encontrei em Eduardo Galeano a melhor definição: “A utopia está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se distancia dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte se distancia dez passos. Por mais que caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para que eu não deixe de caminhar” (“Las palabras andantes”, 1994).

Em encontro com jovens, muitas vezes me perguntam se, quando eu tinha a idade deles, havia muitos viciados em drogas. Respondo que havia poucos. Não lembro de nenhum amigo, e eram muitos, das turmas de bairros que eu frequentava – ServBem e Mexe-Mexe -, em Belo Horizonte, que usassem drogas, exceto cheirar lança-perfume em época de carnaval. Éramos viciados em utopia.

Minha geração 1968 inventou a contracultura, quebrou paradigmas, promoveu a revolução sexual. É a geração de maio de 1968 na França, dos Beatles, do movimento hippie, de Jimi Hendrix e Janis Joplin.

Então, a Primavera de Praga, o assassinato de Che Guevara na Bolívia, o sectarismo da Revolução Cultural na China, a corrida nuclear entre as grandes potências, a proliferação de ditaduras militares na América Latina, trouxeram o desencanto com a política. A utopia se apagou do horizonte de muitos que acreditavam no avanço inevitável da história. “Já que o mundo não pode ser melhor, ao menos quero me sentir melhor e me alienar das tribulações circundantes”, disseram aqueles que recorreram à maconha, à cocaína, ao LSD.

Hoje, estou convencido de que quanto mais utopia, menos drogas; quanto menos utopias, mais drogas. Quem não “viaja” nos sonhos, tende a “viajar” na química…

A queda do Muro de Berlim (1989) fez ecoar o brado neoliberal de Fukuyama: “A história acabou.” Agora está decretada a perenidade do capitalismo. Haverá inovações tecnológicas e avanços científicos. Mas não mudanças no modelo de sociedade. Este será – para todo o sempre – o da acumulação privada da riqueza e da predominância do capital sobre os direitos humanos. As guerras que o digam.

Após o desaparecimento do socialismo no Leste europeu não há mais lugar para a social-democracia, que consistia em uma concessão feita pelo sistema capitalista, disposto a ceder os anéis para não perder os dedos. Ao garantir mais direitos à classe trabalhadora, a social-democracia criou um antídoto à ameaça comunista.

Desabado o Muro de Berlim, acabaram as concessões. Findou a social-democracia. O sistema arrancou a sua máscara de bom-mocismo e mostrou a sua verdadeira face, simbolizada na submissão dos países europeus à Otan e aos ditames da política exterior da Casa Branca, como demonstram os conflitos entre russos e ucranianos e israelenses e palestinos.

Hoje, a ameaça comunista só existe na retórica neofascista da política antipolítica. Agora, a especulação financeira, ao sobrepujar a produção, agrava o crescente processo de exclusão e amplia mundialmente o pobretariado. As novas tecnologias digitais dispensam mão de obra e precarizam as condições de trabalho, exacerbam a xenofobia e fortalecem muros que consolidam o “apartheid”, aprofundando as desigualdades e provocando hordas de migrações nos continentes mais pobres.

O “apartheid” é gritante em todos os recantos do globo: humanos que vivem como deuses; humanos que vivem como formigas, condenados à labuta diária pela sobrevivência; e humanos em condições tão vis que fazem os demais se perguntarem se eles são realmente humanos ou uma espécie intermediária na escala animal, entre os dotados de razão e os que são movidos a meros atavismos.

Esses supostos inumanos são desprovidos de direitos e encarados como altamente ameaçadores para aqueles que têm algum poder aquisitivo. Essa horda deve ser contida e, se possível, eliminada por guerras, fome, inacessibilidade à saúde e educação. Para tanto, urge ampliar as forças policiais, militarizá-las, multiplicar cárceres e tumbas devido ao aumento da letalidade em “nome da lei e da ordem”.

Nesse mundo de tanta distopia não é de  admirar que haja tanto êxito do narcotráfico, do comércio de armas, do fomento do ódio, e tanto descrédito em relação à ética, à ONU, aos tratados de paz e aos acordos diplomáticos.

Não encontro outro antídoto à barbárie senão o vício em utopia movido por aquilo que Paulo Freire denominava esperançar. E Geraldo Vandré bem define em sua música: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

Frei Betto é escritor, autor do romance sobre a Amazônia “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.