Fui assistente de direção de Zé Celso na primeira montagem de “O rei da vela”, peça de Oswald de Andrade. Em 1966, vim para o convento dos frades dominicanos no bairro das Perdizes, na capital paulista, para onde convergiam vários grupos e partidos de esquerda, todos clandestinos.
Uns, para esconder militantes procurados pela repressão; outros, para guardar documentos; e muitos para ouvir os sermões antiditadura proferidos pelos frades nas missas. Ali cruzei com Plínio Marcos e Flávio Império, José Dirceu, Vladimir Palmeira, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, o psicanalista e jornalista Roberto Freire e Carlos Marighella, entre outros.
Entre nossos amigos, Carlito Maia, publicitário. Sua irmã, Dulce Maia, produtora cultural, me propôs um “bico” no Teatro Oficina. Zé Celso procurava quem desse subsídios ao elenco de “O rei da vela” a respeito da conjuntura do Brasil na década de 1930. A proposta me interessou.
Uma noite, Dulce me levou à casa de Zé Celso. Foram duas horas de papo sobre a “revolução” burguesa no Brasil, na década de 30. Impressionou-me a genialidade de Zé Celso, sua inteligência transbordando pelos gestos largos e precisos, impregnado de criatividade, numa altivez dionisíaca. Estava entregue às obras de Oswald de Andrade com paixão incontida. Em seu apartamento na Bela Vista, amontoavam-se livros sobre o início da industrialização no país, discos de antigas marchas carnavalescas, exemplares raros da revista O Cruzeiro, na qual o diretor do Oficina buscava detalhes de ambientação para o espetáculo.
De teatro, eu pouco entendia, mas aprendi com “O rei da vela” que a falência da aristocracia rural brasileira fora marcada pelo processo de industrialização apoiado, sobretudo, no capital estrangeiro.
Fiz intensa pesquisa para a ambientação da peça que marcou as origens do tropicalismo na cultura brasileira, quando o país se deslocava dos coronéis da lavoura para os capitães da indústria, e proferi minipalestras para o elenco. Ousado, Zé Celso me convidou para ser seu assistente de direção. Ainda que semianalfabeto em matéria de teatro, aceitei. O que selou nossa amizade por toda a vida.
Naquela conjuntura, o teatro parecia atingir – e esgotar – seus recursos contestatórios com “O rei da vela”. A repressão e a censura apagaram a chama da última vela. Restou-nos o sonho de um teatro capaz de propor uma ação concreta e eficaz.
Mas a “loucura” de Zé Celso não chegava ao ponto de subverter os próprios limites da arte, encher o Oficina de bananas de dinamite e reduzir o espetáculo a um único e definitivo gesto: acionar, no palco, o detonador. Todos nós sabíamos que, no teatro, o último ato é o mais importante e o único no qual os espectadores são, além da peça, os verdadeiros atores: o momento da saída, quando o reencontro com a realidade, lá fora, dá-se na visão crítica proporcionada pela arte.
Ora, as palavras nem sempre são suficientes. No teatro, elas ressoam bem, mas não atingem o alvo. Fica sempre algo a ser dito, justamente aquilo que o teatro é, por si, incapaz de dizer. Senti isso ao montar o espetáculo de Oswald de Andrade. Ali se deu um grito, um grito perturbador, mas, para mim, insuficiente. O grito se perdeu sem eco no barulho exterior. Deixei o Oficina após um ano e abracei a resistência direta à ditadura.
Zé Celso, entretanto, jamais duvidou do poder subversivo da arte. Não abdicou de sua trincheira, não cedeu às pressões publicitárias, às propostas de altos salários na TV. Viveu, enfim, em coerência inquebrantável, entregue a fazer todo o seu talento irromper no palco em espetáculos que, para sempre, marcam os melhores momentos da história do teatro brasileiro.
Frei Betto é escritor, autor, entre outros, de “Por uma Educação Crítica e Participativa” e “Tom vermelho do verde” (ed. Rocco)